11 de agosto de 2012

Os indivíduos e a salada ideológica


Uma teoria para explicar o motivo de muitas pessoas se sentirem confusas quanto ao aspecto ideológico que professam pode ser encontrada na seguinte demonstração:
A sociedade é, do ponto de vista dos valores que professa, uma arena discursiva. Nela se encontram disponíveis, disputando espaço, uma infinidade de discursos ideológicos de todos os matizes. Ainda que unidos por premissas maiores que lhe fornecem sustentação, possibilitadoras da formação de blocos discursivos, normalmente são disponibilizados no “mercado” das ideias de forma isolada, de acordo com as particularidades dos casos concretos. Via de regra, possuem como correspondente um discurso contrário, defendido pelo grupo ocupante do lugar oposto no espectro ideológico. Como exemplo desta relação antitética, temos, em relação aos temas que seguem, algumas das oposições possíveis mais comuns:

Filosofia: Idealismo X Materialismo
Economia: Intervencionistas x Não-intervencionistas
Direito: Legalistas X Principiologistas
Direito penal: Repressão x Garantistas
Costumes: Conservadores X Liberais
Aborto: Anti-aborto X Pró-aborto
Homossexuais: Homofóbicos X Igualitários
Religião: Ortodoxos x Modernistas
Criação do mundo: Criacionismo x Darwinismo
Política: Poder das elites X Poder do povo
Raça: Racistas x Igualitários
Imigrantes: Nacionalistas x Internacionalistas

Obviamente se colocam aqui os extremos de cada questão, e, conforme já tratado, tratam-se apenas de ideais de referência, sendo comum que os indivíduos se situem mais próximo de um ou de outro lado (sendo o meio-termo exato também mera idealização - normalmente se tende mais para um lado que para outro). Obviamente teríamos outras categorizações possíveis (como, p. ex., em política: revolucionários X reformistas, progressistas X conservadores, etc.), mas mantém-se o colocado apenas a título de exemplo.
Um cidadão comum, que não está habituado à pesquisa séria sobre questões do tipo, desconhece mesmo a inevitável coexistência de discursos opostos, pois sequer faz ideia de que os discursos sempre se estabeleçam como um contraponto a outro, igualmente legítimo (do ponto de vista do interesse defendido), embora em sentido contrário. Dessa forma, passa a orientar suas opiniões conforme o acesso casual que obtém em relação a este ou aquele discurso.
Assim:
O indivíduo está em casa assistindo o jornal do meio-dia quando ouve uma entrevista com um artista famoso que se coloca a favor da legalização do aborto. A argumentação parece razoável (pois não tem noção de que a ampla maioria dos discursos só estão disponíveis na arena discursiva por apresentarem grau considerável de razoabilidade); muda de canal, e ouve a justificação plausível de um pastor sobre a veracidade evidente da teoria criacionista e como o darwinismo apresenta argumentos insustentáveis; Folheia uma revista que defende de forma coesa e irretorquível o liberalismo econômico como única solução para o desenvolvimento de uma nação; Sai de casa, e encontra num bar um defensor entusiasta da pena de morte, que lhe oferece alguns elementos que favoreçam tal medida; Durante o curso técnico, ouve uma palestra de um defensor dos direitos humanos contrariando de forma veemente e bem argumentada a ideia de redução da maioridade penal; Liga a televisão à noite, e ouve um discurso eloqüente do deputado Jair Bolsonaro sobre a inconstitucionalidade da lei que criminaliza a homofobia; Antes de dormir, assiste a uma reportagem na TV a cabo sobre o sofrimento dos palestinos na guerra contra Israel.
Pronto. Temos nosso Frankenstein ideológico. Vemos que nosso honesto cidadão, por ignorar que na arena discursiva cada discurso razoável tem como contraponto outro discurso razoável que lhe é contrário, acaba aderindo como posição própria aquele que lhe chega primeiro (às vezes variando conforme o grau de eloqüência e autoridade argumentativa que se atribui ao emissor do discurso, em contraposição a outro que, casualmente, teria menos talento de argumentação – pois o melhor argumento nem sempre corresponde à posição que lhe pareceria mais adequada, bastando para isso que o emissor casual do discurso contrário não seja um eficiente argumentador). Temos que cumpriria aqui o discurso o papel de preenchimento do vazio opinativo do indivíduo, que agora já está apto a emitir opinião a respeito de determinado assunto (ainda que de forma superficial, por não atingir os pressupostos ideológicos que fundamentaram aquela opinião).
Outra circunstância comum, no entanto, pode ocorrer com aqueles que professam certos dogmas não devidamente calcados em princípios claros durante parte considerável de sua vida, e que aos poucos vão acumulando experiências pessoais que o conduzem em sentido contrário. Temos como exemplo o socialista infanto-juvenil que vai trabalhar em uma multinacional (pois precisa se sustentar), e aos poucos começa a visualizar um lado que nunca lhe fora apresentado, e a estar exposto a discursos ideológicos a que nunca teve acesso. Muito possível que ele resista a abandonar sua autoimagem de socialista (que lhe era tão cara na juventude), mas ao mesmo tempo passe a defender honestamente no cotidiano teses e medidas práticas de ordem capitalista, extraídas de revistas da área e do contato com seus novos colegas (sem jamais aceitar a pecha de direitista, visto que isso contrariaria sua autoimagem – no máximo aceitará se declarar como de “centro”). Ou, em sentido contrário, um religioso homofóbico infanto-juvenil, rápido na condenação dos gays ao inferno, que circunstancialmente acaba tendo um conhecido próximo (às vezes da própria família) homossexual. Possivelmente resistirá em abandonar suas ideias de restrição ao reconhecimento do direito dos gays, mas acabará por excluir de suas restrições e condenações raivosas ao inferno aquele que lhe é próximo (porque “ele seria diferente”). Outros casos poderiam ser considerados, como o do direitista juvenil a quem o professor da faculdade apresenta textos de índole esquerdista (os quais ele nunca havia tido conhecimento), ou o progressista que aos poucos começa a se expor a ambientes e mídias de orientação conservadora, ou ainda o garantista penal que é assaltado por um menor, etc.
Assim, seja por serem frutos de assimilação de discursos desconexos (em relação aos quais não vislumbra a relação principiológica maior que os envolve e sustenta) ou por estarem em um grau de transição ideológica (defendendo pressupostos teóricos de um lado e posicionamentos práticos de outro), muitas pessoas apresentarão esse caráter de variação valorativa que acaba por dificultar o enquadramento no espectro ideológico. Não que a estipulação de “rótulos” seja essencialmente necessária ou condicionante, pois alguns podem legitimamente não defender posições similares aos demais membros do grupo (cujas posições majoritariamente compartilha), mas o que parece mais comum é que, por desconhecimento dos pressupostos ideológicos maiores que orientam e conectam determinados posicionamentos, e por desconhecer os conteúdos e os argumentos de cada discurso que lhe é contrário (inerentes à complexidade da sociedade e dos problemas dela decorrentes, que muitas vezes faz com que nos socorramos de soluções simplistas inadequadas), o indivíduo passa a defender posições extraídas da casualidade, resultante de um processo de produção de verdades extraídas do senso comum (que, dada a simplicidade que lhe é inerente, não apresenta um método criterioso de produção do conhecimento -  sujeitando-se à oscilações casuísticas e incoerência discursiva) ou do casual acesso a textos e mídias diversas.
Assim, por mais que por vezes nos sintamos compelidos a defender determinada posição em relação a um caso concreto, tenho que, se não conhecermos o máximo do conteúdo argumentativo em sentido contrário (o que pode implicar uma pesquisa por vezes exaustiva – e por isso comumente descartada), e se não reconhecermos a posição que referido discurso ocupa no bloco discursivo ideológico (identificando quais as forças que se posicionam como nós e contrárias a nós), por mais que sejamos enfáticos e por vezes teimosos na defesa desta posição, tenho que ela será inevitavelmente manca (por carecer de um alicerce sólido que lhe dê base).
Mas, também, isso é uma mera especulação de um radical (alguém que não se contenta com nada a não ser as raízes). E certamente haverá uma antítese de tudo o que eu disse.
"Quem matou o artista? Há assim várias hipóteses. E também vários suspeitos. Foi o martelo do operário? Ou foi apenas um acidente de trabalho? Foi a caneta do burocrata? Ou se intoxicou com a tinta dos carimbos? Ou foi o giz da sala de aula? Foi uma bala perdida? Ou ela era direcionada? Ou talvez tenha morrido de fome, para aumentar os lucros dos investidores?


O artista morreu, mas se recusa a ser enterrado
Levanta-se do caixão e corre desatinado
Nu pelos campos
Causando espanto entre as velhas senhoras da sociedade
As pessoas se espantam e gritam
E os senhores engravatados se reúnem:
O artista só faz perturbar a ordem!
E isso não é bom para os negócios
Quem vai conseguir enterrar o artista
e conseguir enfim estabelecer a ordem no mundo?

O artista tem o peito aberto
Por onde escorrem-lhe as entranhas
É agora um zumbi, um verme, um corvo
Transformando o podre em nova vida
E produz mau cheiro
Chafurda a morte
Tem um vômito ácido
Mas toma um Sonrisal® e segue em frente

Já não tem fígado ou pulmão
E o coração está em pedaços
E ainda assim, de suas tripas espalhadas,
Constrói sua obra-prima"


(Paulo A.C.B.Jr)