25 de maio de 2009

Sobre a proibição do uso do véu nas escolas da França (2007)

(resposta à polêmica levantada em uma aula de Filosofia do Direito)

Provavelmente já foi possível perceber minha tendência libertária com relação a essas questões ditas "de foro íntimo". Por isso a questão do véu nas escolas públicas francesas me pareceu tão emblemática, uma vez que minha tendência libertária, penso, está diretamente relacionada com meu ceticismo ou, ainda, com a compreensão quanto ao cuidado que devemos ter no julgamento de outros costumes.

Dessa forma, minha tendência ocidental humanista tenderia, antes de mais nada, a ponderar sobre a possível opressão que é traduzida no ato sob análise. Mas esbarraríamos assim em inevitável dilema: “trata-se de uma expressão cultural”?, ou "algo passível de ser considerado 'injusto' por alguém de outra cultura"?

Se considerarmos que se trata de algo "injusto", entraria em cena o embate entre juízos de valores. E se a justiça tem algo que se possa chamar de “existencial” (no sentido defendido pelos existencialistas), ou seja, sem uma natureza ou um algo que lhe seja absoluto, nunca chegaríamos a um consenso no embate entre duas culturas diversas. E é dessa forma, inclusive, que há os que dizem que “não existe o certo e o errado”.

No caso concreto, restaria a questão se sobre o ato da utilização do véu repousaria, ainda que disfarçadamente, alguma opressão. Se aceitarmos que sim, estaríamos assumindo que há um julgamento de valores acerca do "justo" e "injusto", inclusive em relação a culturas diversas, ou, ainda, a preponderância de um juízo de valor como mais certo, mais justo ou mais próximo da verdade que outro. Mas, penso, isso seria manifestamente contrário ao ceticismo.

Se for considerado um mero costume, do qual não estaríamos aptos a emitir juízo de valor por pertencermos a uma outra cultura, com outras formas de nos relacionarmos com a realidade, ser-lhe-ia assim garantida certa imunidade frente às inumeráveis críticas que lhe são atribuídas pela infinidade de culturas alienígenas.

A intervenção Estatal

Ora, sou da corrente dos que defendem que a intervenção do Estado (considerando que este último tenha que existir), deve limitar-se a questões que afetem objetivamente o convívio entre os indivíduos. Assim, por exemplo, uma pessoa que ande descalça não poderá ser obrigada a usar sapatos a menos que se demonstre (demonstração essa cuja validade será oportunamente questionada) a influência objetiva que isso teria com relação à existência dos outros indivíduos. O caso do cinto de segurança, por exemplo, cuja exigência muitos alegam estar desafiando a liberdade individual, está sendo feita por conta do interesse coletivo, pois na medida em que os acidentes custem menos ao orçamento da saúde, melhor será para o Estado e, caso as coisas sejam como devem ser, melhor também para o contribuinte.

Outro exemplo: quando uma pessoa sai armada às ruas, sei que isso, por si só, aumenta minha chance de levar um tiro, logo, ponderadas todas as variáveis e circunstâncias concretas, poderei ser favorável a que o Estado crie uma lei que proíba as pessoas de saírem armadas às ruas. No entanto, se algumas pessoas decidirem sair com algum amuleto religioso cuja religião dominante considere ofensivo ou incômodo, não acho que o Estado deveria proibir tal amuleto, por tratar-se de mero incômodo de ordem subjetiva, ou seja, apenas decorrente de uma impressão, e não de informações objetivas (ninguém demonstrou que aquele amuleto tivesse realmente poderes de influenciar a realidade de qualquer pessoa).

Em outras palavras, se não estiver objetivamente “atrapalhando” algum indivíduo, o Estado, dominado por quem quer que seja, não deverá intervir. Claro que este é o Estado baseado nas garantias individuais, cujo interesse coletivo entra em cena apenas quando for contrariado, de forma objetiva, por qualquer interesse individual (princípio da igualdade). No entanto, ao restar demonstrado que determinado ato (cuja demonstração, volto a dizer, deverá ser legitimamente avaliada) é prejudicial ao interesse coletivo, estudar-se-á maneiras de bani-los com o menor dos traumas a qualquer das partes que no processo sucumbam. E como exemplos dessa intervenção do Estado por conta de questões objetivas temos a distribuição de renda, a limitação de horários de barulho, a proteção ambiental, etc. Claro que não posso dizer que esta é a concepção "certa" de Estado, mas apenas uma das concepções à qual me filio.

Dessa forma, sou libertário ao ponto de não acreditar que deva ser policiado pelo Estado o porte de um símbolo, cuja influência na realidade se dá unicamente de forma subjetiva, pois que objetivamente nada mais é do que um pedaço de madeira, plástico ou pano. Acho lamentável que alguém possa ser preso por queimar um pedaço de pano ou papel só porque nele está pintado um símbolo nacional, quando, de fato, não provocou dano a ninguém (pessoal, patrimonial, etc). Não podemos esquecer ainda, a título de exemplo, do caso da proibição da maconha, iniciada nos EUA com o único objetivo de controlar policialmente a população mexicana que a consumia. Ou o caso do Chaplin, que foi proibido de voltar aos EUA porque mostrou um imigrante chutando o traseiro de um oficial da imigração em um de seus filmes – o que seria “simbolicamente”, segundo os fanáticos conservadores, uma ofensa ao governo daquele país... A supervalorização de um símbolo pode ser mais perigosa para a democracia que sua utilização normal.

Mas, certamente, uma teoria existencialista do Estado poderia vir a embasar tamanhos argumentos. Afinal, se o Estado não é ou possui algo de absoluto, algo que possamos falar que seja “da sua natureza”, mas sim, se considerarmos que o Estado “é o que dele for feito”, então poderá ser feito o que quer que seja pelos grupos que detém esse Estado, independente até dos ideais que embasaram a criação desse Estado.

Assim, certamente, proibirão e permitirão conforme seus interesses, e tudo será legitimado, ademais quando cobertos sob o manto do discurso democrático.

Não é possível esquecer-nos ainda do processo de aculturação oficial (exercido pelo próprio Estado). De certa forma, estar-se-ia buscando ocidentalizar as pessoas, não só via idéias, mas também via roupas, ainda que seja com base em um discurso pretensamente humanista.

É curioso ver a direita européia laica. O laicismo historicamente está associado mais à esquerda e aos primeiros liberais (progressistas).

Contrário à guerra, como todo cidadão politicamente correto dos dias de hoje, acho louvável uma garantia oferecida por alguns países (ainda que muitas vezes obtidas no Judiciário) sobre o direito de oferecerem uma prestação alternativa aos que se eximem do alistamento militar por motivo de crença religiosa (as Testemunhas de Jeová estão entre os que aconselham a busca pela prestação alternativa). O direito de crença religiosa e sua manifestação, quando não prejudicar objetivamente o direito de outro, estão protegidos como direitos de personalidade fundamentais, similares ao direito de livre expressão.

Por fim, obviamente que sou favorável à laicização do mundo. Só torço para que não seja de uma forma excessivamente traumática, movida por interesses escusos, ou que deixe seqüelas em seus habitantes. Torço, assim, para que a experiência da França dê certo, e que tenha como resultado mais liberdade do que opressão. Não apenas para o bem dos franceses, mas para o bem do ser humano. E, por mais que isso causa estranheza a alguns, isso inclui também os imigrantes da França.

Padrões aceitáveis (2005)

Uma questão que recorrentemente nos é dada a refletir é a que trata da dificuldade encontrada por nós, seres pensantes, sobre a definição dos padrões “aceitáveis” de convivência comunitária. Podemos considerar que essa definição dos padrões será reflexo direto de nossa visão de mundo, construída sobre padrões culturais e hereditários, ao que reconheceremos que vários são os fatores que influenciam direta ou indiretamente nessa questão: fatores emocionais, financeiros, ideológicos, etc. Para o melhor desenvolvimento do texto, trabalharei aqui com o que chamarei de padrões "primários" (individuais/éticos/coerção interna) e "secundários" (sociais/normas/coerção externa). Muito difícil seria transformar a visão que um indivíduo traz nesses padrões a que chamarei secundários, depois de formados todos os padrões primários, os quais lhe servem de alicerce. Exemplificando, não seria nem um pouco simples fazer crer a uma pessoa cujos padrões do que é ou não aceitável com relação à sua convivência social, que seja formada com base em pensamentos de “negação” do estilo de vida de determinada sociedade, que ela deveria aceitar os padrões defendidos exatamente por este universo de pessoas cujo modo de ver ela rechaça frontalmente.

Assim, padrões primários (que seriam aqueles segundo os quais o indivíduo se relaciona consigo mesmo, e da mesma forma sua concepção de mundo, e que embasará sua ética) condicionam necessariamente seus padrões secundários de convivência social.

A maneira mais utilizada pelas pessoas para modificar os padrões secundários (sociais) independentemente dos padrões primários (individuais), é pela coerção e/ou controle ideológico. Assim, por exemplo, obriga-se um indivíduo que, em seus padrões individuais de existência, acredita que é certo roubar ou matar, a sufocar esses padrões, forçando-o a ter um comportamento que seja considerado “aceitável” segundo os padrões secundários ou sociais. Contudo, essa seria assim uma construção artificial, uma vez que os padrões primários (dos quais os padrões secundários devem derivar), permaneceriam os mesmos. O indivíduo, neste caso, molda seus padrões sociais não por uma convicção sua, mas pela simples coerção daqueles que, legítima ou ilegitimamente, definiram quais seriam os padrões “aceitáveis” de convivência social.

Obviamente que essa construção artificial pode ser muito traumática, e provável causadora de muitas neuroses e outros distúrbios (como estamos acostumados a presenciar recorrentemente em nossa sociedade), principalmente quando esses ditos padrões “aceitáveis” de comportamento não são direcionados para uma libertação do indivíduo, mas sim para sua alienação. Temos como maior exemplo atual os padrões definidos segundo uma lógica individualista de consumo, disfarçados sob as mais diferentes formas, direcionadas a um afastamento cada vez maior entre os seres humanos com o que lhes seria, do ponto de vista de sua emancipação, realmente importante. Pois saibamos que a imposição desses padrões, por mais que se revistam da inocência daqueles que nos querem “bem”, pode ser tão cruel quanto a constante colonização imposta via as guerras mais sanguinárias a que estamos habituados a presenciar, feitas exatamente na defesa desses padrões. E incomoda muito, muito mesmo, a todos os inocentes - ou não tão inocentes assim - defensores desses padrões, quando se defrontam com pessoas que, por qualquer motivo, não estão dispostas a acatá-los e a eles se submeter. Não raras vezes custam a entendê-los, considerando-os como loucos ou tolos irresponsáveis de qualquer tipo.

Mas, então, o que nos resta, quando a imposição de determinados padrões ditos “aceitáveis” só faz sufocar os últimos resquícios de nossa individualidade e humanidade? Muitas são as formas encontradas pelo homem e outras ainda serão encontradas, certamente. Muitos encontram a saída no isolamento, em sociedades ditas “alternativas” em que pessoas com interesses comuns estabelecem uma coexistência pacífica, em nome da satisfação mútua (não podemos esquecer, contudo, que, na defesa dos padrões “aceitáveis”, pode o aparelho do Estado ser acionado para pôr um fim a essas experiências consideradas "subversivas" – bom exemplo disso temos no episódio da Guerra de Canudos). Outras encontram saídas menos pacíficas, exacerbando sua violência contra a hipocrisia desses padrões, ilustrando assim esses casos todas as experiências de terrorismo, em que grande parte das vezes acabam fazendo vítimas ditas “inocentes”.

Tudo isso como resultado da neurose coletiva resultante da manutenção desses padrões ditos "aceitáveis" de comportamento, que, embora travestidos das mais singelas boas-intenções, carregam em sua própria essência o gérmen da violência e da morte que eles tentam posteriormente sufocar, em nome de uma aparente busca pela qualidade de vida e liberdade.

Assim, sou do ponto de vista de que não adianta querer que nos submetamos a padrões “aceitáveis” de comportamento em sociedade, por mais que sejam ideologicamente construídos para que pensemos estarmos fazendo o “bem” e o “certo” (respeitar a lei, a vida, a propriedade, ter um bom emprego, etc.), quando nossos padrões individuais, construídos empiricamente sobre a realidade que nos cerca, mostra-nos claramente que esses padrões de comportamento não foram na verdade construídos pensando em nosso bem comum, mas sim sobre a mais sórdida das hipocrisias.


(Obviamente esta é uma questão que nunca estará encerrada, por mais que o queiram que esteja os indivíduos mais conservadores. Mas na minha opinião, ela deverá estar sempre aberta àqueles que o quiserem discutir de maneira honesta e em favor do livre pensamento, sem dogmatismo e/ou pré-concepções.)


Correspondência enviada em 2005.


Segunda correspondência - comentários:

Acho que é plenamente natural que os pais se preocupem com os filhos, que os filhos se preocupem com os pais, ou que amigos se preocupem com amigos. Abordando a questão por seu lado mais científico, diria que é inclusive um comportamento padrão dos mamíferos em geral, ocorrendo assim na maioria dos casos - e, dessa forma, temos que o contrário é que não seria natural. No entanto, prefiro abordar a questão por seu aspecto mais filosófico (que inclusive não exclui a abordagem científica, mas, sim, a engloba, sendo por isso mesmo, mais ampla que aquela), e talvez pudesse extrapolar ainda mais, abordando essas questões pelo lado artístico (que a meu ver, é ainda maior, e que engloba todas as outras). Mas, por ora, apenas registro que acho tudo isso natural e penso até que não deveria ser diferente. Tive apenas a intenção, em minha exposição inicial, de delimitar a questão para além do senso comum, e penso que foi o que fiz, apesar dos improvisos e pequenas impropriedades posteriormente percebidas; mas a intenção da abordagem era, na essência, essa, ou seja, trazer a questão para um nível de debate filosófico possível, necessário, e, acredito, mais condizente com nossas capacidades racionais.

Na verdade, são questões que me são antigas e, inclusive, algumas, abordadas exaustivamente em meu pequenino livro poético-filosófico (Experimentações, publicado em 2004). Velhos dilemas do homem pensante, como “o meu bem-estar" e o "bem-estar do outro”, que são questões as quais ainda não posso dizer que encontrei respostas que considere satisfatórias. Porque, na verdade, por mais que nos preocupemos com o bem-estar de alguém, questiono-me até que ponto temos o direito de interferir nos rumos que esta pessoa decide dar à sua vida. Por exemplo, quando um amigo decide que vai tirar a própria vida, quantos de nós não tardariam em condenar sua ação, taxando-a como uma atitude "errada"? Do meu modo de ver (teoricamente - claro), posso dizer que, em princípio, acredito que apenas ele teria o direito de decidir sobre algo tão particularmente seu como sua vida. Ou talvez como a máxima do Abujamra, que proclama: “a vida é sua, estrague-a como quiser”. Obviamente, uma questão subjacente é a de estar-se certo de que referida pessoa tenha condições de decidir sobre o que é melhor ou não para sua vida. Mas disso possivelmente nunca teremos certeza. Nesse ponto, sou de uma opinião que para muitos pode soar contraditória, já que acredito que a maioria das pessoas realmente não sabe o que é melhor para si. E iria ainda mais longe: mas quando o indivíduo sabe o que "não é melhor", e ainda assim acha que deve fazê-lo, qual deveria ser nosso papel com relação a isso? Para mim, esta é uma questão extremamente complicada. Por conta de minha formação essencialmente libertária, acredito que as pessoas, por princípio, têm direito de fazer o que acham que devem fazer. Mesmo quando acham que o que devem fazer é impedir o outro de fazer o que este último acha que deve fazer. E aí reside o velho dilema, que inclusive é o que norteia as modernas concepções que dão base ao poder de polícia do Estado. Nosso ilustre e clássico Raskolnikov, personagem de Dostoievski em Crime e Castigo, defende o discurso de que homens extraordinários (uma minoria ínfima de seres humanos que podem ser considerados realmente capazes de possuir autonomia da vontade) podem fazer o que quiserem. Seria uma forma mais elaborada e de maior complexidade filosófica daquela máxima de Santo Agostinho (alguma coisa como “ama e faze o que quiseres”). Abordo essa questão de uma forma mais poética no texto “O Artista (uma epopéia sobre a liberdade)”, também constante em meu livro. Dito dessa forma, acho muito natural que as pessoas lutem por aquilo por que elas acham que devem lutar, independente de isso ser considerado “aceitável” ou não. Da mesma forma como é natural que as pessoas que discordem daquilo a elas se contraponham (ação e reação - a conseqüência faz parte da obra). Ilustrando rápida e inusitadamente, acredito, por exemplo, que seria mesmo legítimo (filosoficamente - e não legalmente), que as populações indígenas tomassem de assalto as terras que lhes foram tomadas outrora pelos europeus, inclusive massacrando a população branca da qual eu faço parte, como esta o fez outrora pra tomar seu território. No entanto, como instinto de sobrevivência, eu não me deixaria assassinar sem resistir (e provavelmente poderia matar alguns deles na defesa de minha vida). Nesse jogo de contradições naturais, resta-me a satisfação de poder ter uma certa compreensão de grande parte desses comportamentos. É o que, inclusive, me dá elementos que garantam que nem sempre eu vá agir conforme a "lógica" permeada de “senso-comum” daqueles (o que faz, por sua vez, que alguns de meus comportamentos se configurem muitas vezes incompreensíveis para grande parte das pessoas). E permaneço, assim, compreendendo, na medida do possível, enquanto certas questões permanecerão, por sua vez, e talvez indefinidamente, sem solução.

5 de abril de 2009

Discussão crítica acerca das definições de Direita e Esquerda (ensaio)

É sabido que há diversos grupos políticos ao redor do mundo que, por força das circunstâncias, acabarão por se encaixar em alguma das definições de “esquerda” ou “direita” (ainda que nas formas de "centro-esquerda" ou "centro-direita"). No entanto, entendo necessário que se considerem as imensas diferenças existentes entre os povos e culturas do planeta, cada qual com uma realidade e com problemas que pedem soluções próprias, pois que disso mesmo decorrerão as diferenças entre aquilo que se convencionou chamar de “esquerda” e “direita” ao redor do mundo e ao longo da história. Ainda, para a correta definição dos termos, penso que se faz necessária a análise dos pilares centrais sobre os quais tais rótulos foram construídos. Deveremos, assim, volver às origens de referidos termos, quais sejam, à Revolução Francesa.

Diz-se que, à época da Revolução Francesa, à “direita” (posição física ocupada na Assembleia) sentavam os monarquistas, conservadores - no sentido de manutenção do antigo regime. À “esquerda”, de outra forma, estavam os indivíduos mais progressistas, liberais, que pretendiam realizar mudanças na sociedade, reivindicando uma maior liberdade e maior justiça social - claro que, em relação a este último ponto, alguns mais que outros (ainda mais por tratar-se de uma revolução burguesa), mas, de forma geral, era esse o “espírito” dessa primeira esquerda, influenciada pelos ideais iluministas. Ocorre, no entanto, que quando esta esquerda toma o poder (os revolucionários anti-monarquistas), logo se formaria uma nova oposição que, sentada à direita, apresentaria um perfil mais moderado (tempo da disputa entre jacobinos - de caráter mais popular - e os girondinos - ligados às classes mais abastadas). E porquanto moderação é naturalmente uma característica de cunho mais conservador (ainda mais quando estes “moderados“ representavam indivíduos de melhores condições econômicas, e por isso mesmo, menos interessados em mudanças radicais), a “direita” estaria assim associada mais uma vez ao conservadorismo e aos indivíduos de maior poder aquisitivo, que usufruíam melhor do status quo disposto pela sociedade (diz-se que é mesmo uma tendência as pessoas com mais posses, por viverem menos desconfortavelmente, apresentarem perfil mais conservador, uma vez que têm mais a perder com mudanças radicais). Dessa forma, enquanto a primeira “direita” era a classe mais rica e mais conservadora, a “esquerda” que nascia era formada por aqueles que queriam a liberdade de poder usufruir daquilo que era pelos primeiros apropriado em detrimento da maioria. Trazia-se, assim, a idéia de democracia, na qual estava embutida sua concepção tanto política (participação no poder, nas tomadas de decisões) quanto social (participação nas benesses materiais decorrentes da produção das riquezas).

Após a agonia provocada pelo Terror Revolucionário (que em momentos como este se torna difícil o enquadramento em rótulos como direita e esquerda - haja vista o estado de “emergência” e até mesmo de certa paranóia em que naturalmente se encontra o novo regime, e que obriga, acima de tudo, a lutar para se manter) os moderados acabam assumindo o poder. E após o triunfo das revoluções liberais, aquela “esquerda” originariamente formada por burgueses, agora no poder, e depois de reajustada a ordem das coisas (o que lhe garantiu o alcance dos direitos buscados), não foi capaz de realizar a tão desejada democracia social, que motivara grande parte das massas menos favorecidas que inicialmente a apoiaram. As classes que originalmente se uniram contra o antigo regime, depois que este fora derrubado começam a visualizar novos conflitos de interesse existentes entre si, antes ocultos em torno do ideal de uma liberdade mais abstrata. Ou seja, a liberdade que uma classe conquistou não seria capaz de emancipar a outra classe que lhe apoiara. Assim, aqueles detentores do poder, agora com melhores condições econômicas, tenderão, como conseqüência, a conservar este poder. Tomarão, dessa forma, o lugar da antiga “direita”, sendo composta mais uma vez pelas pessoas mais favorecidas economicamente, contra uma “esquerda” que se formava, composta pelos representantes das classes menos favorecidas, quais sejam, os trabalhadores e outros menos afortunados, que estavam em busca novamente de maior liberdade política (participação no poder e nas decisões) e fruição das benesses materiais que lhes eram negadas.

Anos mais tarde, esta nova “esquerda”, formada pelos trabalhadores, também acaba chegando ao poder, por ocasião da Revolução Russa. E, após amargar-se novamente um Período de Terror pós-revolução (considerado por seus operadores como necessário para a sobrevivência de um estado revolucionário ainda pouco consolidado, frente a um grande contingente de ferozes opositores), o sistema estabelecido é colocado de forma a traduzir uma nova realidade, passível, agora, de uma análise mais ponderada sobre sua natureza. Ora, é sabido que, após ter destronado a elite detentora do poder e das riquezas (características comuns de forças mais à direita), esse sistema acabou por formar também novas classes, quais sejam, de um lado a dos burocratas e administradores, membros ou aliados do governo, que usufruíam de maiores benesses, e, do outro, os trabalhadores, ainda com carências econômicas não satisfeitas. Esta burocracia naturalmente acabaria por tornar-se mais conservadora, simplesmente para tentar manter sua situação privilegiada, bem como mais favorecida economicamente. Muitos, e há muito tempo, têm considerado o governo de Stalin como de direita (basta verificar o discurso dos trotskistas e anarquistas, que lhe faziam oposição internacionalmente - chegava-se ao ponto de se falar em partido comunista de direita, ainda mais quando oprimia revoltas populares ou outras manifestações dos trabalhadores descontentes). (Obviamente não pretenderei fazer aqui uma análise devidamente pormenorizada acerca de situação tão complexa como o foi o regime soviético. Contudo, referidos exemplos são úteis para que se busquem elementos históricos aptos a elucidar a questão central que é a busca pelas características da “direita” e “esquerda”, ao tentar-se encaixá-los nas definições cujos contornos vão aqui se delineando.)

Dessa forma, até o que vimos aqui, poderíamos arriscar traçar um conceito inicial (e por isso ainda pouco rigoroso) de “direita”, como sendo formada por um grupo de indivíduos que, usualmente, 1) usufrui das riquezas proporcionadas por uma determinada forma economicamente excludente de organização da sociedade; e 2) que tem poder político em relação ao qual são conservadores no sentido de sua manutenção. Chegaríamos, assim, ao conceito tradicional, encontrado nos dicionários, que alia a direita ao conservadorismo.

Mas certamente o conceito não poderá se esgotar aí, pois, se assim fosse, um indivíduo economicamente desfavorecido, por exemplo, não poderia ser de “direita”, por não usufruir das riquezas da sociedade, bem como não o poderia ser um grupo que não detivesse alguma parcela do poder político. No entanto, entendo que é pressuposto que se analise não somente a condição fática do indivíduo, mas, acima de tudo (e isso é realmente o que me parece mais importante), seu ideal de sociedade. Dessa forma, o indivíduo pode ser economicamente desfavorecido, mas, se em seu pensamento não pretender que haja uma democracia econômico-social (ainda que pretenda sua ascensão social em particular), mas defendendo, ao contrário, um governo que mantenha esta situação de sistema de classes entre explorados e oprimidos, este indivíduo terá um pensamento de direita. Da mesma forma, ainda que não participe do poder, se pretender um governo que defenda estes pontos de vista, da forma acima mencionada (separação de classes, conservadorismo econômico-social, etc.), também terá um pensamento de direita. O próprio conservadorismo, no sentido de lutar para conservar o estado das coisas, poderia ser aplicado, de certa forma, em uma interpretação livre, tanto a um governo de direita quanto de esquerda (claro que esta última apenas quando a “situação das coisas que se quer manter” seja de efetiva democracia econômico-social, caso contrário não seria sequer um governo de esquerda). Assim, como diferencial básico condicionante, poder-se-ia arriscar que a “esquerda” seria formada por um grupo de indivíduos que pretendam a concretização da democracia econômico-social (inclusão social). Talvez este seja o pilar principal que norteará os conceitos, separando, ainda que não se pretenda cair em qualquer maniqueísmo simplista, o joio do trigo.

Ora, é fato que a direita, historicamente, tem sido contra a democracia econômico-social (normalmente tomada como um nivelamento injusto e antinatural, e normalmente associada ferozmente por seus opositores a um discurso "comunista" - com especial ênfase em períodos de grande divisão político-ideológica, como na época da Guerra Fria). Há que se ressaltar que o igualitarismo inerente à referida concepção de democracia implica necessariamente em perda de riqueza e poder de certos setores tradicionais, ainda mais quando, é de se notar, estes últimos (poder e riqueza), na maior parte das vezes, têm andado juntos.

É importante ainda lembrar que um governo de esquerda, na forma mencionada, não terá necessariamente que aderir aos ideais de democracia política nos moldes liberais, mas, inevitavelmente, deverá ter um compromisso com a democracia econômica. Claro que será inegável a importância da democracia política, mas apenas quando não for incompatível com a democracia econômica, pois, do contrário, talvez esta fique subordinada àquela (por exemplo, quando a liberdade política acaba favorecendo aos que detêm maiores recursos financeiros). Nesse sentido, sob uma ótica liberal, referidos regimes costumam ser considerados como autoritários (o que seria aplicado a praticamente totalidade das experiências comunistas ao longo da história).

Como uma última complementação, entendo que essa democracia econômico-social não poderá ocorrer em bases xenofóbicas ou chauvinistas. Sabe-se que a “direita” tradicional tem em alta conta o nacionalismo, sem muito se importar que ele seja utilizado em detrimento de outros povos. Dessa forma, a “esquerda” até poderá ser formada por nacionalistas, no sentido de defender os interesses de seu povo, mas sempre com a idéia de cooperação com outros povos menos favorecidos ao redor do mundo, independentemente de sua nacionalidade, e sempre em busca de um sistema de inclusão social global.

Por final, com base nestes novos elementos, teremos que, para ser considerado de “esquerda”, será necessário um ideal (naturalmente com práticas que não lhe sejam contraditórias), de 1) democracia econômico-social (privilegiando, assim, os menos favorecidos), e 2) apreço pelos povos explorados, independentemente de valores nacionalistas.

Dessa forma, o pensamento de “direita” seria, por exclusão, caracterizado pela ausência de uma ou outra dessas condições (se imaginarmos, por exemplo, um programa de governo que privilegie a democracia econômica para os nacionais, em desfavor de outro povo ou grupo nacional, ou, ainda, alguém que, apesar de pregar ideais de democracia econômico-social, estes seriam apenas demagógicos, desenvolvendo práticas que a contrariassem).

Assim, tenho que alguém cuja democracia social não seja mera retórica, e que manifeste apreço pelos explorados do mundo, poderá ser considerado uma pessoa de “esquerda”. “Centro-esquerda” quando moderada, buscando a inclusão social através de reformas por dentro das regras do jogo econômico e jurídico vigente, e “extrema-esquerda” quanto mais se afastar da moderação contida nestas intenções reformistas, desejando uma ruptura mais brusca no sentido de alcançar o ideal de democracia econômico-social.
Da mesma forma haverá os que se chamam de “centro-direita”, que aceitarão algumas reformas que não alterem em muito sua situação de poder e riqueza, ou ainda “extrema-direita”, que buscará um governo forte na manutenção do sistema de divisão de classes (ainda que apenas de forma internacional - ou seja, nações explorando nações), contra um ideal de democracia econômico-social de caráter universal.

Naturalmente outras características básicas acabarão por se sobressair dentro desta divisão posta, como o individualismo, típico da direita, sustentado na idéia de vitória dos mais aptos (sejam indivíduos ou nações), em oposição ao pensamento solidário e coletivista da esquerda.


Paulo Alcir Cardoso Brocca Junior, 12/09/2007

15 de março de 2009

A questão da verdade e o relativismo (anotações)

Muitas vezes o problema do relativismo pode estar na forma de raciocínio utilizado. Utilizando-se um raciocínio indutivo, pensa-se em 5 ou mais coisas que verificamos serem relativas, e por conseguinte, presumimos que tudo é relativo.

Importante lembrar que, inexistindo um “certo” em absoluto, ainda que apenas no plano ideal (no caso do conhecimento da realidade), seria impossível afirmar, por exemplo, que o nascimento dos bebês não acontece "através das cegonhas". Para os não-relativistas essa questão fica mais fácil, e a hipótese das cegonhas é considerada errada em absoluto. A ciência ocorre (ou deveria ocorrer) dessa forma: analisando as hipóteses e descartando as que estiverem erradas (para isso é necessário que haja o certo e o errado – ainda que apenas como algo a ser buscado).

Contudo, entendo que a questão principal se daria em torno das verdades morais (que podem ser manipuladas pelas ideologias), e é a isso que a maioria das pessoas se refere ao afirmar que tudo é relativo. Mas ainda assim, entendo que há algumas reservas. Os direitos humanos, em especial o direito à dignidade, são uma prova disso. Em um planeta hipotético, por exemplo, em que não haja qualquer lei ou senso moral condenando o seqüestro e a tortura, seus habitantes poderiam seqüestrar e torturar outros inocentes, alegando existir uma crença de que torturar seres inocentes melhora a safra de grãos. Segundo os relativistas, um humano que lá aterrissasse não poderia dizer “isso é errado”, porque certo e errado é relativo e cultural (para esses alienígenas é certo torturar inocentes para fins imaginários, logo, não posso convencê-los do contrário - mesmo porque não existe certo e errado).

Misturando matemática e biologia, poderíamos dizer que a dor desnecessária tende a ser evitada (os seres-vivos tendem a buscar o prazer/satisfação dos instintos e fugir da dor - e a existência de exceções, como querem alguns, só serve para confirmar a regra). Assim, os direitos humanos têm evoluído nesse sentido, procurando evitar que haja sofrimento desnecessário (sem motivo relevante), quando existiriam alternativas viáveis para que isso não ocorresse. A existência de "motivo relevante" é a questão central, pois há culturas que utilizam a dor em rituais de passagem. Contudo, guerras motivadas pela ganância de uns poucos, que causam sofrimento a crianças inocentes, não pode ser considerado “certo”, ainda que esses poucos, que lucram com a situação, achem que o é (o “certo” desses últimos seria relativo, e estaria em confronto com um “certo” maior, talvez absoluto(?)). Um doente mental (sem noção da realidade), por exemplo, que tortura animais no quintal de casa não está fazendo o "certo", por mais que para ele aquilo faça algum sentido. O relativismo nesses termos só faz permitir atrocidades e impede que façamos alguma coisa no sentido de combatê-las, impedindo julgamentos das ações consideradas erradas.

Entendo que o relativismo tenha vindo como resposta a uma sociedade em que os “certos e errados” eram elaborados de forma arbitrária e manipuladora. Por outro lado, a ausência total de critérios de certo e errado pode fazer com que os desejos mais egoístas do ser humano possam ser levados a cabo diante de uma platéia apática. De toda forma, é uma discussão que deve ser mantida em aberto, pois acredito que é algo que deve ser constantemente refletido, e não ignorado meramente de uma forma simplista.


Comentários/complementações:

É a verdade absoluta ou relativa?

Não acredito que se possa dar uma resposta definitiva a essa pergunta. E, antes que alguém se adiante: não, isso não prova que a verdade seja relativa; prova apenas que nós não sabemos se existe uma verdade absoluta.

As "verdades relativas" todos nós conhecemos, e dizem respeito ao conhecimento do homem a respeito das coisas em determinado lugar e em determinada época. Uma evolução do conhecimento, poder-se-ia dizer, com verdades diferentes em cada lugar e época. Contudo, existindo apenas verdades relativas, seria possível falar em evolução do conhecimento? O conhecimento evoluiria em direção a quê?

Antigamente dizia-se que a Terra era o centro do universo, hoje afirma-se que não o é. Qual das afirmações estaria mais próxima da verdade? Caso admitamos que a segunda afirmação está mais próxima da verdade (ainda que não seja a verdade final), admitir-se-á que existe uma verdade acima das verdades relativas (que chamaremos de "absoluta" ou algo que seja parecido com isso), e que representaria o mundo físico como ele é de fato. Então esse conhecimento em direção à realidade (desconhecida do homem em sua plenitude) estaria mais próximo da "verdade" hoje do que na época das cavernas.

Dessa forma, não existindo verdade absoluta, e podendo a verdade relativa dançar de um extremo a outro do conhecimento e das teorias, jamais haveria evolução dos conhecimentos, ou, ainda, jamais poderíamos dizer que estamos mais próximos da verdade acerca de alguma coisa. Existiria apenas uma dança, em um ou noutro sentido, aleatoriamente, em direção ao acaso, e sem consolidação de qualquer conhecimento.

Como outro exemplo, imaginemos que exista um planeta desconhecido próximo ao que hoje chamamos sistema solar. Admitindo-se certo realismo filosófico, esse planeta existiria de fato independente de nosso conhecimento a respeito dele. Assim, as verdades relativas do homem não indicariam a existência desse planeta, mas ele ainda assim existiria como uma verdade absoluta não descoberta pelo homem.

Assim, ainda que a verdade absoluta (realidade do mundo buscada pelo conhecimento humano) exista, esforçamo-nos para nos aproximar dela, como um sonar que corrige nossa posição para que sigamos na direção certa (ainda que em zigue-zague, com grandes reveses e equívocos), sem nunca saber se poderemos alcançá-la, mas torcendo para que a cada dia estejamos dela mais próximos. Se ela não existir (parafraseando Dostoievski), e sendo tudo relativo, todas as verdades seriam permitidas?

(Desconsiderei aqui até mesmo a questão das verdades matemáticas - ou exatas - como afirmar que a Lua tem diâmetro menor do que a Terra, o que não creio que seja uma verdade relativa - assim como um mais um são dois).

É uma questão controversa e sei que existem opiniões filosóficas respeitáveis contrárias à minha (especialmente depois do advento da filosofia contemporânea). Assim, torço para que continuemos refletindo a respeito.
A questão da verdade e o relativismo I (em construção)

É a verdade absoluta ou relativa?

Não acredito que se possa dar uma resposta definitiva a essa pergunta. E antes que alguém se adiante, não, isso não prova que a verdade seja relativa. Prova apenas que nós não sabemos se existe uma verdade absoluta. As "verdades relativas" todos nós conhecemos, e dizem respeito ao conhecimento do homem a respeito das coisas em determinado lugar e em determinada época. Uma evolução do conhecimento, poderia dizer, com verdades diferentes em cada lugar e época. Contudo, existindo apenas verdades relativas, o conhecimento evoluiria em direção a quê?

Antigamente se dizia que a Terra era o centro do universo, hoje afirma-se que não o é. Qual das afirmações estaria mais próxima da verdade? Caso admitamos que a segunda afirmação está mais próxima da verdade (ainda que não seja a verdade final), admitir-se-á que existe uma verdade acima das verdades relativas (que chamaremos de "absoluta" ou algo que seja parecido com isso), que representaria o mundo físico como ele é de fato. Esse conhecimento em direção à realidade (desconhecida do homem em sua plenitude), estaria mais próximo da "verdade" hoje do que na época das cavernas. Dessa forma, não existindo verdade absoluta, e podendo a verdade relativa dançar de um extremo a outro do conhecimento e das teorias, jamais haveria evolução dos conhecimentos, ou, ainda, jamais poderíamos dizer que estamos mais próximos da verdade acerca de alguma coisa. Existiria apenas uma dança, em um ou noutro sentido, aleatoriamente, em direção ao acaso, e sem consolidação de qualquer conhecimento.

Como outro exemplo, imaginemos que exista um planeta desconhecido próximo ao que hoje chamamos sistema solar. Admitindo-se certo realismo filosófico, esse planeta existiria de fato independente de nosso conhecimento a respeito dele. Assim, as verdades relativas do homem não indicariam a existência desse planeta, mas ele ainda assim existiria como uma verdade absoluta não descoberta pelo homem.

Assim, ainda que a verdade absoluta (realidade do mundo buscada pelo conhecimento humano) exista, esforçamo-nos para nos aproximar dela, como um sonar que corrige nossa posição para que sigamos na direção certa (ainda que em zigue-zague, com grandes reveses e equívocos), sem nunca saber se poderemos alcançá-la, mas torcendo para que a cada dia estejamos dela mais próximos. Se ela não existir (parafraseando Dostoievski), e sendo tudo relativo, todas as verdades seriam permitidas?

P.S. Desconsiderei aqui até mesmo a questão das verdades matemáticas (ou exatas) como afirmar que a Lua tem diâmetro menor do que a Terra, o que não creio que seja uma verdade relativa (assim como um mais um são dois).

É uma questão controversa e sei que existem opiniões filosóficas repeitáveis contrárias à minha (especialmente depois do advento da filosofia contemporânea). Assim, torço para que continuemos refletindo a respeito.
FÉ E RAZÃO - À LUZ DAS EXPERIÊNCIAS COM AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ

Minha experiência com os estudos promovidos pelas Testemunhas de Jeová tem representado uma enorme contribuição em minha pesquisa sobre os significados atribuídos pelas diversas doutrinas, religiosas ou não, a conceitos referentes a valores como certo, errado e verdade.

Inicialmente, é necessário que se discorra um pouco sobre o que vem a ser "RAZÃO", mencionada no título da presente análise. Entre os significados atribuídos à palavra "razão" pelos dicionários, cabe aqui destacar, segundo o Aurélio: “Faculdade de avaliar, julgar, ponderar idéias universais, raciocínio, juízo. Faculdade de estabelecer relações lógicas, de raciocinar. Inteligência, bom senso, prudência.”

Ao que parece, em linhas gerais, pode-se dizer que o conceito segue a idéia de que a RAZÃO seria a responsável por uma avaliação das coisas com base na LÓGICA, em que predominassem a prudência e o bom senso. É sempre importante lembrar que essas coisas que submetemos à avaliação lógica chegam até nós através dos sentidos, que, como temos aprendido, são naturalmente imperfeitos, falhos e sujeitos a imprecisões diversas. O "bom senso" inclusive faz com que esta variável seja incluída e ponderada em qualquer análise efetuada pela RAZÃO.

Por LÓGICA devemos atentar para o que também nos diz o dicionário: “Coerência de raciocínio, de idéias. Modo de raciocinar peculiar a alguém, ou a um grupo.” Na esfera acadêmica, a lógica poderia ser mesmo comparada a uma equação matemática, em que o valor que fosse atribuído às premissas (idéias básicas e condicionantes) determinaria a validade do argumento. Assim, apenas a título de exemplo, um argumento do tipo “todos os homens são inteligentes” só poderá ser considerado 100% "verdadeiro" se assim o forem consideradas as premissas utilizadas na obtenção dessa conclusão. Nesse sentido, temos que a afirmação "todo homem é inteligente" é baseada nas seguintes premissas (que a antecedem):
Premissa I – todo homem possui um cérebro;
Premissa II – inteligência pode ser considerada como a capacidade de aprender e/ou de resolver problemas (desde que de forma intencional e utilizando meios eficientes) (utilizando aqui seus significados mais utilizados pelo senso comum, que podem por acaso vir a ser substituídos, sem que isso altere a estrutura lógica do exemplo);
Premissa III – podemos considerar o aprendizado como uma das funções do cérebro.
Conclusão: Dessa forma, se considerarmos que todo homem possui um cérebro, que tem como uma função possibilitar o aprendizado e resolver problemas, então será possível afirmarmos que "todo homem é inteligente".

Contudo, utilizando-se a mesma lógica racional, a conclusão final poderá ser atacada em suas premissas, como por exemplo, se a "premissa I" (todo homem possui um cérebro) não for verdadeira, certamente a validade da conclusão final ficará abalada.

Para atacar-se a validade de uma premissa, devemos considerá-la como a uma nova conclusão, em um novo argumento, e tentar buscar pela não-veracidade das premissas que o compõem.

Faz-se necessário abrirmos um parêntese, para tentar um explicação melhor sobre o que se quer dizer com "premissa". A "premissa", neste caso, grossissimo modo, nada mais seria do que as partes nas quais se subdividem os argumentos, e que servem de base para a elaboração de uma conclusão.

Assim, a premissa de número I (todo homem possui um cérebro) da qual derivou a conclusão “todo homem é inteligente”, tomada como um novo argumento, teria então como premissas:
I – houve determinado número de estudos que constataram a existência de um órgão, a qual deram o nome de cérebro, na cabeça de alguns homens que foram objetos destes estudos.
II – um número considerado estatisticamente como "razoável" pode ser utilizado para que se possa generalizar a todo o conjunto as regras obtidas por meio dos estudos direcionados a alguns de seus integrantes.
III – os cientistas consideraram como razoável o número de estudos que identificaram cérebros na cabeça dos homens, o suficiente para afirmar que todo homem possui um cérebro.

Se estas premissas forem 100% válidas, e em número suficiente para que não haja margem de dúvida ao argumento, este último será válido, e, assim, poderemos concluir que todo homem possui realmente um cérebro.

No entanto, se fôssemos mais fundo, e procurássemos descobrir a validade de alguma destas premissas, agora consideradas como um novo argumento, com base agora em suas premissas, teríamos que a afirmação "os cientistas consideraram como razoável o número de estudos que identificaram cérebros na cabeça dos homens como suficientes para afirmar-se que todo homem possui um cérebro", estaria sujeita a perguntas que girariam em torno da autoridade dos cientistas para validação das conclusões tiradas e dos métodos utilizados, e assim sucessivamente.

Enfim, dispomos de um mecanismo estritamente rigoroso de avaliação dos argumentos e conclusões, e de verificação de sua coerência à luz dessa ferramenta a serviço da razão a qual chamamos LÓGICA.

Em torno disso, algumas questões centrais podem ser traçadas para o desenvolvimento do raciocínio sobre o tema inicial:

- Existiria algum argumento que não precisasse ter analisada a veracidade de suas premissas para ser considerado verdadeiro?
- A busca pela verdade seria infinitamente a busca das premissas dos argumentos, que se transformariam em novos argumentos, os quais deveriam ter buscadas a validade das premissas que o compõem, e assim infinitamente?
- Haveria um limite sobre o qual todos os argumentos repousariam, sendo ele a base de sustentação de todos os outros, atrás do que nada haveria?

VERDADES INCONTESTÁVEIS (DOGMAS)

Perguntas deste tipo fazem tornar clara a questão do surgimento do DOGMA, que, tomado segundo o dicionário Aurélio, é “o ponto fundamental e indiscutível de doutrina religiosa e, por extensão, de qualquer doutrina ou sistema”.

Assim, seria possível que toda organização de idéias necessitasse repousar sobre uma base sólida, sob pena de não conseguir se sustentar. Seria isso uma afirmação verdadeira? Ou seria isso apenas mais um dogma? Como saber?

A maneira mais indicada, pela lógica e pela razão, seria, de novo, tomá-la como um argumento e analisar suas premissas.

Contudo, tem-se que DOGMAS são argumentos considerados válidos apesar da não-preocupação com a análise lógica de sua validade, à luz da verificação da validade de suas premissas. Em geral, surgem pela incerteza natural das premissas que o compõem, e pela necessidade atribuída por alguns de que aquele pensamento seja considerado como verdade (e isso pode ocorrer tanto com nobres intenções quanto com as não tão nobres). As religiões em geral se baseiam em dogmas devido a impossibilidade ou não aceitação de seus membros de que se possa analisar logicamente seus fundamentos e suas divindades. Ao menos não dentro da lógica tipicamente acadêmica. Pois há também, não podemos esquecer, segundo o dicionário, o conceito de lógica como “modo de raciocinar peculiar a alguém ou um grupo”.

DIVERSAS LÓGICAS?

Assim, isso poderia sugerir a existência de diversas lógicas, como a lógica das crianças, a lógica dos religiosos, a lógica dos militantes de esquerda, a lógica feminina, etc. No entanto, há também os que defendam a lógica como uma só. O que ocorreriam seriam maneiras mais ou menos falhas de utilizá-la. Seria a lógica, assim, objeto de uma ciência exata, que não poderia se deixar influenciar por valores subjetivos (individuais). Em que pese reconhecermos a impossibilidade absoluta de atingirmos o grau máximo desta pretensão (razão pura, não influenciada por valores pessoais aprendidos, que a distorcem), sabemos também que o constante aperfeiçoamento é capaz de garantir uma evolução neste processo, para que seja possível atingir uma proximidade cada vez maior com o ideal de imparcialidade de julgamento.

DOGMAS RELIGIOSOS (O caso das Testemunhas de Jeová)

Como a maioria das religiões, as Testemunhas de Jeová apegam-se à veracidade incontestável de suas escrituras. E, assim sendo, tudo aquilo que é mencionado nas Escrituras é considerado uma verdade incontestável.
Logicamente, teríamos a seguinte construção:

Afirmação: Pode-se confiar de maneira absoluta na veracidade dos acontecimentos e fatos narrados na Bíblia, bem como em seus ensinamentos.

Premissas:
I – Houve estudos que comprovam a veracidade da Bíblia (ou, para alguns, não são necessários estudos para isso).
II – Estes estudos (caso tenham havido) foram realizados em número suficiente e por pessoas que têm autoridade e competência para que se possa acreditar absolutamente em suas conclusões.

Dessa forma, caso não se possa analisar a veracidade destas premissas, restará tomar o argumento como DOGMA, e assim, incontestável. Caso se possa, inevitavelmente se chegaria à conclusão de que há margens de dúvida nesta afirmação. Obviamente que o significado de “número suficiente de estudos” e “pessoas com autoridade e competência para conclusões” são permeados de valores subjetivos (ou seja, pessoais e, portanto, variáveis de indivíduo para indivíduo). O número suficiente de estudos pode variar de acordo com o grau de rigorosidade que se quer atribuir ao resultado da pesquisa. Da mesma forma o grau de confiabilidade que se atribui aos pesquisadores envolvidos. Desta maneira, é inevitável a fixação de critérios objetivos (exatos, e não variáveis de indivíduo para indivíduo) para o aferimento destas variáveis, que, mesmo não sendo do agrado de todos, devem satisfazer ao rigor de uma maioria. E se isso não garante a fidelidade absoluta do resultado, ao menos confere uma certa segurança de que se está um pouco mais próximo disso. Desta forma é que um grupo considerável de cientistas decide o que é cientificamente aceitável, e o que não é. É claro que não se pode presumir, como já dissemos anteriormente, que os cientistas possam simplesmente se abstrair de todo e qualquer valor subjetivo, ou até mesmo da vaidade de não querer ceder a novas idéias que contrariem as suas. Mas quero crer que somente essa vaidade não seria suficiente para aprisionar as novas idéias eternamente, se elas estiverem baseadas em estudos criteriosos. Novas gerações de cientistas devem servir para remover este aspecto conservador e permitir a evolução das idéias e teorias (afinal, é possível que nada tenha sido tão revolucionária na história do homem quanto foi a Ciência).

Um ponto importante da divergência entre cientistas e religiosos está concentrada no tópico a seguir.

EVOLUCIONISMO X CRIACIONISMO

Antes de mais nada, é importante lembrar o fato de que ambas as teorias têm seus defensores, produções literárias, e cientistas conceituados. A Evolução, contudo, tem mais adeptos no meio científico, podendo ser considerada uma idéia praticamente hegemônica. O que há, de fato, são cientistas procurando pontos falhos da teoria, e grupos de religiosos utilizando estes pontos falhos, e outros pontos pouco detalhados ou permeados de certa abstração especulativa, para tentar minar a teoria como um todo e para justificar que, em sendo a teoria da Evolução falha, logo a teoria do Criacionismo seria verdadeira. Não merece acolhida tal pensamento. Afinal, ambas as teorias possuem falhas (aliás, acredito mesmo ser impossível existir uma teoria que não possua falhas, por mais que possam permanecer escondidas durante algum tempo ou aos olhos de alguns), e é possível, teoricamente, que a verdade esteja um pouco com cada um dos lados, ou ainda com nenhum dos dois.

Do ponto de vista acadêmico, muito cuidado devemos exigir dos envolvidos neste debate, para que não deixem suas paixões contaminarem a razão. Os evolucionistas devem tomar cuidado para que seus argumentos não acabem sendo tomados também como dogmas, e que a validade de suas premissas não possa ser verificada criteriosamente. Pois sabemos que é arriscado ter verdades absolutas na ciência. Os mais sensatos sabem que as teorias se alternam e evoluem, na busca por respostas a questões que periodicamente surgem, com a constante descoberta e armazenamento de novas informações.

Mas se os cientistas devem ter este cuidado, muito mais o deverão ter os religiosos mais radicais, que não têm nenhum compromisso com a evolução das idéias, uma vez que consideram que há apenas uma interpretação correta e acabada das escrituras (apesar de cada seita ou religião possuir uma interpretação diferente a respeito de seu conteúdo), e que deve-se crer cegamente na verdade do que é nessas escrituras narrado e ensinado.

A QUESTÃO DA FÉ

Segundo as Testemunhas de Jeová, a fé seria a certeza de um acontecimento futuro que não pode ser verificado de antemão. Assim, crê-se cegamente neste evento futuro, que seria o Reino de Deus que está por vir para recompensar os justos e punir os ímpios. Este evento, se resumido a um argumento, ficaria: “O Reino de Deus se instalará em breve, recompensando os justos e punindo os ímpios.”

Para aferição lógica deste argumento, como já vimos, necessário seria desmembrá-lo nas premissas que lhe dão sustentação:

Premissa I – A Bíblia menciona que o Reino de Deus se instalará em breve, recompensando os justos e punindo os ímpios;
Premissa II – A Bíblia está sempre certa.
Logo, segundo os que assim o crêem, é verdadeiro o argumento de que “o Reino de Deus se instalará em breve, recompensando os justos e punindo os ímpios.”

E, como já vimos, querendo analisar a veracidade deste argumento, necessário se faz verificar a veracidade de suas premissas. A premissa I é facilmente verificável como verdadeira, bastando para isso um pouco de estudo bíblico. O problema está com a premissa II (“a bíblia está sempre certa”), que como já vimos, é um DOGMA, e não pode ser contestado em suas premissas - que, como já vimos, são:
I – Houve estudos - ou não são necessários estudos - que comprovam a veracidade da Bíblia.
II – Estes estudos - caso tenham havido - foram realizados em número suficiente, e por pessoas que têm autoridade e competência para que se possa acreditar absolutamente em suas conclusões.

Do ponto de vista lógico, se nem nos estudos científicos razoavelmente hegemônicos poderemos acreditar cegamente, por que deveríamos acreditar cegamente nos estudos da minoria que defende exatamente o oposto?

Restar-nos-ia então a FÉ para que acreditemos nos DOGMAS defendidos pelas religiões. E, ainda, esta FÉ não pode se apoiar na lógica, e assim também, não pode se apoiar na razão (ao menos na maneira acadêmica como encaramos esta). É lógico que, se quisermos considerar a compreensão do mundo como fenômeno subjetivo (individual) por definição, então toda concepção seria permitida, e seria possível até que acabemos justificando a fé pela lógica e pela razão individual de uma pessoa ou grupo.

Mas surge aí uma questão fundamental - que é o que amarra necessariamente a filosofia e a ciência -, que é a questão da objetividade e subjetividade do conhecimento. Talvez então encontraríamos justificativa para a existência do dogma, tanto para um como o outro lado da questão, como necessário para a fixação dos critérios básicos necessários para a aferição da veracidade de uma afirmação.

É este, sem dúvida, o ponto sobre o qual se apóiam os religiosos para justificar o uso da fé. Um homem sem fé, dizem, caminha na dúvida, e a dúvida só pode resultar em desespero. E aí enfrentaríamos uma pergunta clássica, sobre aquilo que é melhor: a incerteza das coisas na busca criteriosa da verdade, ou uma falsa verdade que preencha o vazio provocado pela incerteza?

Os religiosos acham impossível viver na incerteza das coisas, e buscam rapidamente uma certeza absoluta sobre a qual se basear. Não são, porém, apenas os religiosos que assim o fazem, mas acredito que a maioria dos seres humanos. Talvez não estejam incluídos os considerados céticos puros. Outros, no entanto, diriam que até os céticos repousam sobre o dogma da dúvida como única verdade possível.

O Diabo e a Dúvida

Segundo os religiosos, a dúvida provém do diabo, que induz-nos a duvidar ou da autoridade ou mesmo da existência divina. Como admirador dos critérios lógicos que sou, eu não poderia simplesmente descartar qualquer das hipóteses, sem uma mínima análise racional, pois, por princípio, qualquer argumento pode ser em tese verdadeiro. A meu ver, e correndo risco de adentrar em a área teológica, uma maneira de tentar resolver a questão seria agir para que esta dúvida não comprometa ensinos morais fundamentais, inseridos grande parte deles entre os mandamentos religiosos, sobre uma vida dedicada ao fazimento do bem e o conhecimento do mal, para não se deixar enganar.

Ora, mas já é comum o pensamento de que conceitos como bem e mal são subjetivos (e por isso variáveis conforme os grupos ou pessoas). Assim, não poderíamos simplesmente rotular as coisas como boas e más. Mas do ponto de vista da rejeição dos dogmas religiosos, penso que uma interpretação alternativa poderia garantir que os preceitos religiosos e morais que considero fundamentais possam ser mantidos. Assim, como exemplo, princípios como o amor ao próximo devem ser levados em consideração independentemente de se ter a Bíblia como uma verdade absoluta ou não. A caridade e preocupação com as injustiças sociais podem e devem ser levadas a cabo independente de se acreditar cegamente em Deus ou de se ter dúvidas sobre a sua existência, pois estes são princípios ÉTICOS necessários ao bom desenvolvimento dos seres da Terra. São dogmas MORAIS, que facilmente poderiam substituir os dogmas religiosos para uma boa convivência dos homens (e não seria este o maior exemplo a ser aprendido com o Cristo: o desapego a questões menos essenciais decorrentes de um grande número de leis e normas de conduta, quando deveríamos nos concentrar em coisas mais essenciais como o amor ao próximo e um estilo de vida mais humilde?).

E se, segundo os religiosos, seguir estes mandamentos é fazer a vontade do diabo, penso que talvez devêssemos ponderar melhor sobre os papéis de Deus e do diabo, e sobre quais das orientações seriam melhores para a humanidade. Mas, enfim, se realmente existir um Deus, e sendo ele justo, repousaremos tranqüilos, pois teremos então certeza de que toda decisão sua (mesmo que contra nós) será uma decisão justa.

Humildade como princípio

Informam-nos os religiosos que a verdade só será conhecida pelos que tiverem, entre outras coisas, humildade. De fato, humildade de aceitarem que suas idéias, adquiridas de sua tradição, possam estar erradas, ainda mais por sermos humanos, naturalmente imperfeitos, sujeitos a falhas de todo tipo, inclusive de discernimento. Afirmam isso com a intenção de que se reconheça que as tradições não-bíblicas estão erradas, e que a verdade constante na Bíblia só seria compreendida por quem tivesse a humildade de reconhecê-la nos moldes da interpretação daquele que o afirma.

Ora, que é necessário humildade para que se possa buscar a verdade, isto é indiscutível. Assim, os próprios religiosos que quiserem perseverar nesta busca deveriam ter humildade para admitir que eles, também seres humanos imperfeitos como nós, podem estar errados, e que o que eles crêem como verdade absoluta, pode não ser tão absoluta assim.


(texto escrito em 2002)

O QUE É SER REALISTA?

É muito comum encontrarmos pessoas que se autointitulam realistas. Este termo é comumente utilizado para os que querem se diferenciar daqueles que se dizem otimistas ou pessimistas. Estariam, assim, no meio dos dois.

Mas, analisando-se mais profundamente, o que significa ser realista?

Primeiramente, é necessário que abstraiamos o seu significado real do que na maioria das vezes lhe é atribuído pelo senso comum (que é, na verdade, a concepção sob a qual seu sentido é tomado pela maioria das pessoas - muito embora não haja entre elas acordo no tocante a um possível significado objetivo - como é de se esperar de quem constrói seus pensamentos com base no senso comum).

Muitos acham que ser realista significa seguir os padrões da sociedade em que vivem ou do sistema econômico-ideológico ao qual pertencem. Ou seja, ser uma pessoa que acredite nos mesmos valores que são compartilhados por todos os seguidores desse modo de vida, adaptados às necessidades do sistema. Os que, por sua vez, procuram seguir caminhos alternativos aos da maioria são considerados lunáticos.

Ora, os que assim pensam, na minha opinião, não seriam realistas, mas sim conservadores, e/ou alienados. Como não acho que "realismo" tenha necessariamente alguma relação com "conservadorismo", descarto este argumento em prol de uma discussão mais produtiva.

Há ainda os que, por ignorância, acham que, além de seguir os padrões de comportamento considerados "normais" pela sociedade, o indivíduo não deve sequer se esforçar para tentar contribuir para a construção de algo como "um mundo melhor", visto que, segundo eles, essa é uma atitude inútil, sendo melhor “seguir a correnteza”, aproveitando as oportunidades que lhes tragam maior satisfação individual. Estes costumam se chamar realistas, mas, na verdade, não passam de individualistas (no sentido "egoísta" do termo), e quando não reacionários. Agarram-se assim ao individualismo, mas é como se invocassem: “Sejamos realistas e ajamos como os animais que somos!” Pois não imagino que seja um completo absurdo considerar o individualismo como a máxima expressão da natureza animalesca do ser humano. Dessa forma, quando é individualista, o homem nada mais é do que a sua porção animal elevada de forma exponencial, haja vista sua alta capacidade de planejamento racional, típica da raça humana (o que muitos costumam chamar de inteligência), associada por sua vez ao desenvolvimento sem precedentes da parte posterior do córtex cerebral. Assim, com um cérebro maior e com um raciocínio mais apurado, foi possível ao homem usar das mais surpreendentes tecnologias para colocar seus instintos egoístas em um nível tal, inclusive a ponto de poder destruir o planeta e a própria civilização. Ou algo que talvez seja pior que isso: é capaz de permitir que seres humanos sofram as mais graves injustiças e barbáries, simplesmente pelo seu egoísmo e pelo seu apego a certos padrões ideológico-sociais.

Mas, afinal, o que seria então o realismo?

Inicialmente, mesmo que por simples questão de método, não poderíamos nos furtar a uma consulta para verificar o que nos dizem os dicionários, nos quais o termo “realismo” é encontrado como “a atitude de prender-se ao real, verdadeiro, objetivo”.

Dessa forma restaria a pergunta: o que é “real, verdadeiro ou objetivo”?

Com relação à “verdade”, a meu ver, um indivíduo realista saberia que nunca conseguiria efetivamente alcançá-la. Deveria ter a noção de que nunca conseguirá entender a verdade sob todos os seus ângulos, haja vista ser, por natureza, um ser limitado, devendo haver centenas de milhares de ângulos possíveis, ou quem sabe até infinitos, a serem conhecidos e analisados.

Mas, diria ele, isso não impede que a busquemos, para que possamos chegar dela cada vez mais pertos.

Desta forma, basicamente, eu poderia dizer que ser realista é buscar constantemente chegar o mais próximo possível da verdade (aqui entendida como a própria realidade, donde deriva o ser "realista").

Encará-la tal qual ela é, traçando objetivos concretos, podendo assim elaborar estratégias mais eficientes no alcance dos objetivos. Neste processo, por sua vez, nada impede que uma pessoa realista possa ser mais otimista para algumas coisas e mais pessimista para outras (o realismo absoluto, como todo absoluto cognitivo, não passaria de um ideal). O que não pode, imagino, é deixar-se levar por essas opiniões (otimistas ou pessimistas), ou ainda pelo conservadorismo e individualismo, para ser negligente ou deixar de fazer sua parte.

REALISMO E UTOPIA

Ter uma utopia, e buscá-la constantemente através de todos os seus atos cotidianos, é prova de falta de realismo?

Por tudo o que foi descrito, não me parece que seja o caso. Aliás, é possível que seja mesmo o contrário. Vejamos. Ter utopias, e lutar para alcançá-las, mesmo sabendo que, por sua própria natureza, são elas inatingíveis, não demonstra falta de realismo, mas talvez um realismo pragmático que as pessoas não estão acostumadas a compreender. Ora, pois entre as várias razões da existência da utopia eu poderia destacar as de servir de guia às nossas ações, entregar algum sentido às nossas vidas, inspirar nossas atitudes no sentido de um mundo melhor, lutar contra o demasiado conformismo e conservadorismo (que só servem para manter intocado o atual estado das coisas), etc. Assim, penso que são necessárias as utopias para que medidas objetivas sejam pensadas e tomadas, e para que o mundo não seja refém dos interesses conservadores que se beneficiam do atual e injusto estado das coisas.

REALISMO E CONFORMISMO

Vimos na primeira parte do texto que realismo não pode ser confundido com conformismo ou inoperância, pois o conformismo geralmente descamba para o individualismo, e individualismo não é realismo (mas uma possível herança de nosso lado animal).

Assim, poder-se-ia considerar realista alguém que segue esse conformismo que nos leva a caminhar rumo a um mundo cada vez pior, apenas para seguir um caminho ou assumir um comportamento padrão? Não seria mais realista buscar uma maneira mais eficiente para atingirmos uma vivência melhor, ou até mesmo, na pior das hipóteses, para a manutenção da própria sobrevivência do homem? Ser realista não significaria analisar a possibilidade de se procurar um caminho menos destrutivo? Ou é mais fácil achar-se realista dizendo que não há outro caminho, além de cada um buscar o melhor para si mesmo? Estes, auto-intitulados realistas, continuam a seguir o caminho padronizado, não acreditando no trágico fim da civilização, acreditando, por sua vez, que o homem não deixará que isso aconteça.

Mas, obviamente, se de alguma maneira, o homem, algum dia, conseguir melhorar esta situação, e quiçá de alguma forma conseguir revertê-la, o certo é que não terá sido por contribuição destes que se acham realistas, mas que, na verdade, são os que contribuem para a derrocada do mundo. Resta a nós torcermos para que as pessoas sabiamente realistas sejam suficientes para que consegamos construir um mundo melhor para as gerações futuras. Pois se já é difícil com pessoas tentando ajudar a melhorar, imaginem se todos decidissem lavar as mãos para os problemas globais, como se eles não fossem seus. Quer parecer que aumentando a parcela dos que agissem assim a situação pioraria enormemente. E creio que esta seja uma opinião realista.

Paulo A C B Jr
(texto escrito em 2002)

VIDA APÓS A MORTE

Desde que o homem é homem (e ninguém sabe ao certo o exato momento em que isso aconteceu) ele teve curiosidade de saber o que havia depois da morte. Não sei se outros animais se preocupam com isso. Mas o fato é que esta é uma curiosidade natural, e faz parte do comportamento investigativo do ser humano (comportamento este que, segundo os pesquisadores, teria lhe garantido o diferencial na luta pela sobrevivência). Então as pessoas costumam querer saber o que acontece quando a gente morre. Eu diria que é provável que nunca saibamos exatamente. Aliás, talvez seja impossível provar se há ou se não há alguma vida após nossa morte, visto que não deixa nenhum rastro cientificamente detectável.

O QUE ACONTECE CIENTIFICAMENTE: Você vive depois da morte!

Quando uma pessoa morre, ela deixa para o mundo ao seu redor várias coisas: seus genes, a matéria que formava seu corpo, suas idéias, bem como as conseqüências de todos os atos que tomara em vida. São, assim, diversas as maneiras que dispomos para viver além de nossa existência material. Como poderíamos dizer, por exemplo, que indivíduos como Benjamin Franklin, Santos Dumont ou Isaac Newton estariam mortos se suas maiores obras influenciam ainda hoje todo o nosso modo de vida? Ou outros ainda como Hitler, cujas idéias estão ainda presentes em diversos indivíduos e grupos de extrema-direita. Poderíamos dizer que até mesmo Jesus Cristo encarnaria suas idéias em algumas pouquíssimas pessoas durante os séculos (pessoas essas que não são assim reconhecidas, já que estamos esperando por um Cristo que faça milagres). Assim também acontece quando passamos para frente os ideais aprendidos com nossos antepassados. Da mesma maneira os nossos genes, ou seja, informações de nosso corpo físico, nossa aparência, nosso sangue, que são passados para as futuras gerações (caso tenhamos filhos). E assim também acontece com nossos atos, afinal, tudo que fazemos tem conseqüências e influenciará em maior ou menor grau a vida das outras pessoas, desde o simples ato de ir ao caixa de um banco, ou jogar um papel de bala no chão, ou ir trabalhar, ou estudar... tudo acaba exercendo uma influência ao mundo ao nosso redor, modificando-o. E, à medida que isso acontece, nossos próprios comportamentos vão sendo modificados por ele. Assim o ciclo se restabelece. Desta forma, todos os nossos atos se perpetuarão para além de nossa existência física. Poderíamos então dizer que viveríamos após a nossa morte, na conseqüência de nossos atos (se forem bons, seria o nosso paraíso pessoal, e se forem maus, seria o nosso inferno). Não podemos esquecer ainda do nosso corpo, que é completamente transformado pela natureza e depois retorna a ela sob a energia que mantém vivas as plantas (quem não gostaria de ser eterno assim?)


Seria possível um dia a gente dizer conscientemente que está morto de verdade? Teríamos consciência ao estar morto, ou nossa consciência existiria apenas enquanto existisse o corpo vivo? “Quando morremos viramos uma hipótese”, já teriam dito certa vez, e não temos meios de saber com certeza se vamos ter consciência ou qualquer tipo de vida após a morte. Talvez nunca saibamos. Assim, o ser humano permaneceria eternamente nesta dúvida, somente saciada pela fé, e isso alimentaria as religiões ainda por um bom tempo. E creio que a fé existe exatamente porque existem coisas que não podem ser provadas. Contudo, eu diria ainda que, apesar de ser um assunto interessante, não é esse o ponto que mais deveria preocupar o ser humano. Melhor seria, a meu ver, se ao invés de indagar o que “poderia” acontecer com ele depois da morte, se preocupasse mais com o mundo que o rodeia em vida (e isto se aplica à esmagadora maioria das pessoas).


(Ainda que haja notícias acerca da existência de grupos de cientistas com resultados iniciais aparentemente animadores sobre a existência de consciência fora do corpo, a precaução e o bom senso obrigar-nos-á que se esperem resultados mais conclusivos.)

Paulo A C B Jr (16/11/2000)

A NATUREZA e as catástrofes (Deus?)

Em minha perspectiva de mundo ideal, a sociedade viveria em perfeita harmonia com o meio em que vive. Dentre suas leis, teria em alta consideração uma lei natural, a da ação e reação, onde todas as atitudes individuais, por mais insignificantes que pareçam, têm que ser tomadas com responsabilidade, pensando-se nas conseqüências para a coletividade da qual é parte. Alguns índios costumam chamar ao ambiente que os cerca de “sua outra metade”, pois sabem que sem esta sua “outra metade” eles sequer estariam vivos. Quando destruímos o relevo ou a vegetação de determinado local, o equilíbrio natural é afetado. Como conseqüência, vários acidentes naturais podem ocorrer (enchentes, desmoronamentos, secas, tempestades, etc). O homem de perspectiva coletivista considera que a Natureza existe em estado de impessoalidade - na hora de avisar que seu equilíbrio está abalado, muitos poderão até morrer, bastando para isso que estejam no caminho de sua manifestação (ou “sua ira” como é comum pensarmos). Podemos então comparar seus fenômenos com o comportamento de um Deus, porém, muito diferente de um Deus que estaria sempre disposto a perdoar, ou um Deus que, em troca de um comportamento pré-definido de alguns, zelaria por sua proteção. Mas, de fato, a Natureza é indiferente ao fato de você ser uma formiga, um musgo ou um ser humano, pois quando estamos falando sobre sistema, sabemos que todos os componentes têm suas funções. E uma atitude errada, individualista, poderá comprometer o funcionamento de todo o sistema. E de tempos em tempos, uma catástrofe natural, sem motivos aparentes, tirará algumas vidas, afinal, as necessidades da Natureza não podem se submeter à existência de algumas espécies que habitam um determinado local – o que se diferencia bastante da idéia de um Deus protetor dos homens.

Paulo A C B Jr, 2001
"Quem matou o artista? Há assim várias hipóteses. E também vários suspeitos. Foi o martelo do operário? Ou foi apenas um acidente de trabalho? Foi a caneta do burocrata? Ou se intoxicou com a tinta dos carimbos? Ou foi o giz da sala de aula? Foi uma bala perdida? Ou ela era direcionada? Ou talvez tenha morrido de fome, para aumentar os lucros dos investidores?


O artista morreu, mas se recusa a ser enterrado
Levanta-se do caixão e corre desatinado
Nu pelos campos
Causando espanto entre as velhas senhoras da sociedade
As pessoas se espantam e gritam
E os senhores engravatados se reúnem:
O artista só faz perturbar a ordem!
E isso não é bom para os negócios
Quem vai conseguir enterrar o artista
e conseguir enfim estabelecer a ordem no mundo?

O artista tem o peito aberto
Por onde escorrem-lhe as entranhas
É agora um zumbi, um verme, um corvo
Transformando o podre em nova vida
E produz mau cheiro
Chafurda a morte
Tem um vômito ácido
Mas toma um Sonrisal® e segue em frente

Já não tem fígado ou pulmão
E o coração está em pedaços
E ainda assim, de suas tripas espalhadas,
Constrói sua obra-prima"


(Paulo A.C.B.Jr)