25 de maio de 2009

Padrões aceitáveis (2005)

Uma questão que recorrentemente nos é dada a refletir é a que trata da dificuldade encontrada por nós, seres pensantes, sobre a definição dos padrões “aceitáveis” de convivência comunitária. Podemos considerar que essa definição dos padrões será reflexo direto de nossa visão de mundo, construída sobre padrões culturais e hereditários, ao que reconheceremos que vários são os fatores que influenciam direta ou indiretamente nessa questão: fatores emocionais, financeiros, ideológicos, etc. Para o melhor desenvolvimento do texto, trabalharei aqui com o que chamarei de padrões "primários" (individuais/éticos/coerção interna) e "secundários" (sociais/normas/coerção externa). Muito difícil seria transformar a visão que um indivíduo traz nesses padrões a que chamarei secundários, depois de formados todos os padrões primários, os quais lhe servem de alicerce. Exemplificando, não seria nem um pouco simples fazer crer a uma pessoa cujos padrões do que é ou não aceitável com relação à sua convivência social, que seja formada com base em pensamentos de “negação” do estilo de vida de determinada sociedade, que ela deveria aceitar os padrões defendidos exatamente por este universo de pessoas cujo modo de ver ela rechaça frontalmente.

Assim, padrões primários (que seriam aqueles segundo os quais o indivíduo se relaciona consigo mesmo, e da mesma forma sua concepção de mundo, e que embasará sua ética) condicionam necessariamente seus padrões secundários de convivência social.

A maneira mais utilizada pelas pessoas para modificar os padrões secundários (sociais) independentemente dos padrões primários (individuais), é pela coerção e/ou controle ideológico. Assim, por exemplo, obriga-se um indivíduo que, em seus padrões individuais de existência, acredita que é certo roubar ou matar, a sufocar esses padrões, forçando-o a ter um comportamento que seja considerado “aceitável” segundo os padrões secundários ou sociais. Contudo, essa seria assim uma construção artificial, uma vez que os padrões primários (dos quais os padrões secundários devem derivar), permaneceriam os mesmos. O indivíduo, neste caso, molda seus padrões sociais não por uma convicção sua, mas pela simples coerção daqueles que, legítima ou ilegitimamente, definiram quais seriam os padrões “aceitáveis” de convivência social.

Obviamente que essa construção artificial pode ser muito traumática, e provável causadora de muitas neuroses e outros distúrbios (como estamos acostumados a presenciar recorrentemente em nossa sociedade), principalmente quando esses ditos padrões “aceitáveis” de comportamento não são direcionados para uma libertação do indivíduo, mas sim para sua alienação. Temos como maior exemplo atual os padrões definidos segundo uma lógica individualista de consumo, disfarçados sob as mais diferentes formas, direcionadas a um afastamento cada vez maior entre os seres humanos com o que lhes seria, do ponto de vista de sua emancipação, realmente importante. Pois saibamos que a imposição desses padrões, por mais que se revistam da inocência daqueles que nos querem “bem”, pode ser tão cruel quanto a constante colonização imposta via as guerras mais sanguinárias a que estamos habituados a presenciar, feitas exatamente na defesa desses padrões. E incomoda muito, muito mesmo, a todos os inocentes - ou não tão inocentes assim - defensores desses padrões, quando se defrontam com pessoas que, por qualquer motivo, não estão dispostas a acatá-los e a eles se submeter. Não raras vezes custam a entendê-los, considerando-os como loucos ou tolos irresponsáveis de qualquer tipo.

Mas, então, o que nos resta, quando a imposição de determinados padrões ditos “aceitáveis” só faz sufocar os últimos resquícios de nossa individualidade e humanidade? Muitas são as formas encontradas pelo homem e outras ainda serão encontradas, certamente. Muitos encontram a saída no isolamento, em sociedades ditas “alternativas” em que pessoas com interesses comuns estabelecem uma coexistência pacífica, em nome da satisfação mútua (não podemos esquecer, contudo, que, na defesa dos padrões “aceitáveis”, pode o aparelho do Estado ser acionado para pôr um fim a essas experiências consideradas "subversivas" – bom exemplo disso temos no episódio da Guerra de Canudos). Outras encontram saídas menos pacíficas, exacerbando sua violência contra a hipocrisia desses padrões, ilustrando assim esses casos todas as experiências de terrorismo, em que grande parte das vezes acabam fazendo vítimas ditas “inocentes”.

Tudo isso como resultado da neurose coletiva resultante da manutenção desses padrões ditos "aceitáveis" de comportamento, que, embora travestidos das mais singelas boas-intenções, carregam em sua própria essência o gérmen da violência e da morte que eles tentam posteriormente sufocar, em nome de uma aparente busca pela qualidade de vida e liberdade.

Assim, sou do ponto de vista de que não adianta querer que nos submetamos a padrões “aceitáveis” de comportamento em sociedade, por mais que sejam ideologicamente construídos para que pensemos estarmos fazendo o “bem” e o “certo” (respeitar a lei, a vida, a propriedade, ter um bom emprego, etc.), quando nossos padrões individuais, construídos empiricamente sobre a realidade que nos cerca, mostra-nos claramente que esses padrões de comportamento não foram na verdade construídos pensando em nosso bem comum, mas sim sobre a mais sórdida das hipocrisias.


(Obviamente esta é uma questão que nunca estará encerrada, por mais que o queiram que esteja os indivíduos mais conservadores. Mas na minha opinião, ela deverá estar sempre aberta àqueles que o quiserem discutir de maneira honesta e em favor do livre pensamento, sem dogmatismo e/ou pré-concepções.)


Correspondência enviada em 2005.


Segunda correspondência - comentários:

Acho que é plenamente natural que os pais se preocupem com os filhos, que os filhos se preocupem com os pais, ou que amigos se preocupem com amigos. Abordando a questão por seu lado mais científico, diria que é inclusive um comportamento padrão dos mamíferos em geral, ocorrendo assim na maioria dos casos - e, dessa forma, temos que o contrário é que não seria natural. No entanto, prefiro abordar a questão por seu aspecto mais filosófico (que inclusive não exclui a abordagem científica, mas, sim, a engloba, sendo por isso mesmo, mais ampla que aquela), e talvez pudesse extrapolar ainda mais, abordando essas questões pelo lado artístico (que a meu ver, é ainda maior, e que engloba todas as outras). Mas, por ora, apenas registro que acho tudo isso natural e penso até que não deveria ser diferente. Tive apenas a intenção, em minha exposição inicial, de delimitar a questão para além do senso comum, e penso que foi o que fiz, apesar dos improvisos e pequenas impropriedades posteriormente percebidas; mas a intenção da abordagem era, na essência, essa, ou seja, trazer a questão para um nível de debate filosófico possível, necessário, e, acredito, mais condizente com nossas capacidades racionais.

Na verdade, são questões que me são antigas e, inclusive, algumas, abordadas exaustivamente em meu pequenino livro poético-filosófico (Experimentações, publicado em 2004). Velhos dilemas do homem pensante, como “o meu bem-estar" e o "bem-estar do outro”, que são questões as quais ainda não posso dizer que encontrei respostas que considere satisfatórias. Porque, na verdade, por mais que nos preocupemos com o bem-estar de alguém, questiono-me até que ponto temos o direito de interferir nos rumos que esta pessoa decide dar à sua vida. Por exemplo, quando um amigo decide que vai tirar a própria vida, quantos de nós não tardariam em condenar sua ação, taxando-a como uma atitude "errada"? Do meu modo de ver (teoricamente - claro), posso dizer que, em princípio, acredito que apenas ele teria o direito de decidir sobre algo tão particularmente seu como sua vida. Ou talvez como a máxima do Abujamra, que proclama: “a vida é sua, estrague-a como quiser”. Obviamente, uma questão subjacente é a de estar-se certo de que referida pessoa tenha condições de decidir sobre o que é melhor ou não para sua vida. Mas disso possivelmente nunca teremos certeza. Nesse ponto, sou de uma opinião que para muitos pode soar contraditória, já que acredito que a maioria das pessoas realmente não sabe o que é melhor para si. E iria ainda mais longe: mas quando o indivíduo sabe o que "não é melhor", e ainda assim acha que deve fazê-lo, qual deveria ser nosso papel com relação a isso? Para mim, esta é uma questão extremamente complicada. Por conta de minha formação essencialmente libertária, acredito que as pessoas, por princípio, têm direito de fazer o que acham que devem fazer. Mesmo quando acham que o que devem fazer é impedir o outro de fazer o que este último acha que deve fazer. E aí reside o velho dilema, que inclusive é o que norteia as modernas concepções que dão base ao poder de polícia do Estado. Nosso ilustre e clássico Raskolnikov, personagem de Dostoievski em Crime e Castigo, defende o discurso de que homens extraordinários (uma minoria ínfima de seres humanos que podem ser considerados realmente capazes de possuir autonomia da vontade) podem fazer o que quiserem. Seria uma forma mais elaborada e de maior complexidade filosófica daquela máxima de Santo Agostinho (alguma coisa como “ama e faze o que quiseres”). Abordo essa questão de uma forma mais poética no texto “O Artista (uma epopéia sobre a liberdade)”, também constante em meu livro. Dito dessa forma, acho muito natural que as pessoas lutem por aquilo por que elas acham que devem lutar, independente de isso ser considerado “aceitável” ou não. Da mesma forma como é natural que as pessoas que discordem daquilo a elas se contraponham (ação e reação - a conseqüência faz parte da obra). Ilustrando rápida e inusitadamente, acredito, por exemplo, que seria mesmo legítimo (filosoficamente - e não legalmente), que as populações indígenas tomassem de assalto as terras que lhes foram tomadas outrora pelos europeus, inclusive massacrando a população branca da qual eu faço parte, como esta o fez outrora pra tomar seu território. No entanto, como instinto de sobrevivência, eu não me deixaria assassinar sem resistir (e provavelmente poderia matar alguns deles na defesa de minha vida). Nesse jogo de contradições naturais, resta-me a satisfação de poder ter uma certa compreensão de grande parte desses comportamentos. É o que, inclusive, me dá elementos que garantam que nem sempre eu vá agir conforme a "lógica" permeada de “senso-comum” daqueles (o que faz, por sua vez, que alguns de meus comportamentos se configurem muitas vezes incompreensíveis para grande parte das pessoas). E permaneço, assim, compreendendo, na medida do possível, enquanto certas questões permanecerão, por sua vez, e talvez indefinidamente, sem solução.

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"Quem matou o artista? Há assim várias hipóteses. E também vários suspeitos. Foi o martelo do operário? Ou foi apenas um acidente de trabalho? Foi a caneta do burocrata? Ou se intoxicou com a tinta dos carimbos? Ou foi o giz da sala de aula? Foi uma bala perdida? Ou ela era direcionada? Ou talvez tenha morrido de fome, para aumentar os lucros dos investidores?


O artista morreu, mas se recusa a ser enterrado
Levanta-se do caixão e corre desatinado
Nu pelos campos
Causando espanto entre as velhas senhoras da sociedade
As pessoas se espantam e gritam
E os senhores engravatados se reúnem:
O artista só faz perturbar a ordem!
E isso não é bom para os negócios
Quem vai conseguir enterrar o artista
e conseguir enfim estabelecer a ordem no mundo?

O artista tem o peito aberto
Por onde escorrem-lhe as entranhas
É agora um zumbi, um verme, um corvo
Transformando o podre em nova vida
E produz mau cheiro
Chafurda a morte
Tem um vômito ácido
Mas toma um Sonrisal® e segue em frente

Já não tem fígado ou pulmão
E o coração está em pedaços
E ainda assim, de suas tripas espalhadas,
Constrói sua obra-prima"


(Paulo A.C.B.Jr)