25 de maio de 2009

Sobre a proibição do uso do véu nas escolas da França (2007)

(resposta à polêmica levantada em uma aula de Filosofia do Direito)

Provavelmente já foi possível perceber minha tendência libertária com relação a essas questões ditas "de foro íntimo". Por isso a questão do véu nas escolas públicas francesas me pareceu tão emblemática, uma vez que minha tendência libertária, penso, está diretamente relacionada com meu ceticismo ou, ainda, com a compreensão quanto ao cuidado que devemos ter no julgamento de outros costumes.

Dessa forma, minha tendência ocidental humanista tenderia, antes de mais nada, a ponderar sobre a possível opressão que é traduzida no ato sob análise. Mas esbarraríamos assim em inevitável dilema: “trata-se de uma expressão cultural”?, ou "algo passível de ser considerado 'injusto' por alguém de outra cultura"?

Se considerarmos que se trata de algo "injusto", entraria em cena o embate entre juízos de valores. E se a justiça tem algo que se possa chamar de “existencial” (no sentido defendido pelos existencialistas), ou seja, sem uma natureza ou um algo que lhe seja absoluto, nunca chegaríamos a um consenso no embate entre duas culturas diversas. E é dessa forma, inclusive, que há os que dizem que “não existe o certo e o errado”.

No caso concreto, restaria a questão se sobre o ato da utilização do véu repousaria, ainda que disfarçadamente, alguma opressão. Se aceitarmos que sim, estaríamos assumindo que há um julgamento de valores acerca do "justo" e "injusto", inclusive em relação a culturas diversas, ou, ainda, a preponderância de um juízo de valor como mais certo, mais justo ou mais próximo da verdade que outro. Mas, penso, isso seria manifestamente contrário ao ceticismo.

Se for considerado um mero costume, do qual não estaríamos aptos a emitir juízo de valor por pertencermos a uma outra cultura, com outras formas de nos relacionarmos com a realidade, ser-lhe-ia assim garantida certa imunidade frente às inumeráveis críticas que lhe são atribuídas pela infinidade de culturas alienígenas.

A intervenção Estatal

Ora, sou da corrente dos que defendem que a intervenção do Estado (considerando que este último tenha que existir), deve limitar-se a questões que afetem objetivamente o convívio entre os indivíduos. Assim, por exemplo, uma pessoa que ande descalça não poderá ser obrigada a usar sapatos a menos que se demonstre (demonstração essa cuja validade será oportunamente questionada) a influência objetiva que isso teria com relação à existência dos outros indivíduos. O caso do cinto de segurança, por exemplo, cuja exigência muitos alegam estar desafiando a liberdade individual, está sendo feita por conta do interesse coletivo, pois na medida em que os acidentes custem menos ao orçamento da saúde, melhor será para o Estado e, caso as coisas sejam como devem ser, melhor também para o contribuinte.

Outro exemplo: quando uma pessoa sai armada às ruas, sei que isso, por si só, aumenta minha chance de levar um tiro, logo, ponderadas todas as variáveis e circunstâncias concretas, poderei ser favorável a que o Estado crie uma lei que proíba as pessoas de saírem armadas às ruas. No entanto, se algumas pessoas decidirem sair com algum amuleto religioso cuja religião dominante considere ofensivo ou incômodo, não acho que o Estado deveria proibir tal amuleto, por tratar-se de mero incômodo de ordem subjetiva, ou seja, apenas decorrente de uma impressão, e não de informações objetivas (ninguém demonstrou que aquele amuleto tivesse realmente poderes de influenciar a realidade de qualquer pessoa).

Em outras palavras, se não estiver objetivamente “atrapalhando” algum indivíduo, o Estado, dominado por quem quer que seja, não deverá intervir. Claro que este é o Estado baseado nas garantias individuais, cujo interesse coletivo entra em cena apenas quando for contrariado, de forma objetiva, por qualquer interesse individual (princípio da igualdade). No entanto, ao restar demonstrado que determinado ato (cuja demonstração, volto a dizer, deverá ser legitimamente avaliada) é prejudicial ao interesse coletivo, estudar-se-á maneiras de bani-los com o menor dos traumas a qualquer das partes que no processo sucumbam. E como exemplos dessa intervenção do Estado por conta de questões objetivas temos a distribuição de renda, a limitação de horários de barulho, a proteção ambiental, etc. Claro que não posso dizer que esta é a concepção "certa" de Estado, mas apenas uma das concepções à qual me filio.

Dessa forma, sou libertário ao ponto de não acreditar que deva ser policiado pelo Estado o porte de um símbolo, cuja influência na realidade se dá unicamente de forma subjetiva, pois que objetivamente nada mais é do que um pedaço de madeira, plástico ou pano. Acho lamentável que alguém possa ser preso por queimar um pedaço de pano ou papel só porque nele está pintado um símbolo nacional, quando, de fato, não provocou dano a ninguém (pessoal, patrimonial, etc). Não podemos esquecer ainda, a título de exemplo, do caso da proibição da maconha, iniciada nos EUA com o único objetivo de controlar policialmente a população mexicana que a consumia. Ou o caso do Chaplin, que foi proibido de voltar aos EUA porque mostrou um imigrante chutando o traseiro de um oficial da imigração em um de seus filmes – o que seria “simbolicamente”, segundo os fanáticos conservadores, uma ofensa ao governo daquele país... A supervalorização de um símbolo pode ser mais perigosa para a democracia que sua utilização normal.

Mas, certamente, uma teoria existencialista do Estado poderia vir a embasar tamanhos argumentos. Afinal, se o Estado não é ou possui algo de absoluto, algo que possamos falar que seja “da sua natureza”, mas sim, se considerarmos que o Estado “é o que dele for feito”, então poderá ser feito o que quer que seja pelos grupos que detém esse Estado, independente até dos ideais que embasaram a criação desse Estado.

Assim, certamente, proibirão e permitirão conforme seus interesses, e tudo será legitimado, ademais quando cobertos sob o manto do discurso democrático.

Não é possível esquecer-nos ainda do processo de aculturação oficial (exercido pelo próprio Estado). De certa forma, estar-se-ia buscando ocidentalizar as pessoas, não só via idéias, mas também via roupas, ainda que seja com base em um discurso pretensamente humanista.

É curioso ver a direita européia laica. O laicismo historicamente está associado mais à esquerda e aos primeiros liberais (progressistas).

Contrário à guerra, como todo cidadão politicamente correto dos dias de hoje, acho louvável uma garantia oferecida por alguns países (ainda que muitas vezes obtidas no Judiciário) sobre o direito de oferecerem uma prestação alternativa aos que se eximem do alistamento militar por motivo de crença religiosa (as Testemunhas de Jeová estão entre os que aconselham a busca pela prestação alternativa). O direito de crença religiosa e sua manifestação, quando não prejudicar objetivamente o direito de outro, estão protegidos como direitos de personalidade fundamentais, similares ao direito de livre expressão.

Por fim, obviamente que sou favorável à laicização do mundo. Só torço para que não seja de uma forma excessivamente traumática, movida por interesses escusos, ou que deixe seqüelas em seus habitantes. Torço, assim, para que a experiência da França dê certo, e que tenha como resultado mais liberdade do que opressão. Não apenas para o bem dos franceses, mas para o bem do ser humano. E, por mais que isso causa estranheza a alguns, isso inclui também os imigrantes da França.

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"Quem matou o artista? Há assim várias hipóteses. E também vários suspeitos. Foi o martelo do operário? Ou foi apenas um acidente de trabalho? Foi a caneta do burocrata? Ou se intoxicou com a tinta dos carimbos? Ou foi o giz da sala de aula? Foi uma bala perdida? Ou ela era direcionada? Ou talvez tenha morrido de fome, para aumentar os lucros dos investidores?


O artista morreu, mas se recusa a ser enterrado
Levanta-se do caixão e corre desatinado
Nu pelos campos
Causando espanto entre as velhas senhoras da sociedade
As pessoas se espantam e gritam
E os senhores engravatados se reúnem:
O artista só faz perturbar a ordem!
E isso não é bom para os negócios
Quem vai conseguir enterrar o artista
e conseguir enfim estabelecer a ordem no mundo?

O artista tem o peito aberto
Por onde escorrem-lhe as entranhas
É agora um zumbi, um verme, um corvo
Transformando o podre em nova vida
E produz mau cheiro
Chafurda a morte
Tem um vômito ácido
Mas toma um Sonrisal® e segue em frente

Já não tem fígado ou pulmão
E o coração está em pedaços
E ainda assim, de suas tripas espalhadas,
Constrói sua obra-prima"


(Paulo A.C.B.Jr)