Classe média, mídia e golpe de estado
Um dos maiores esforços do
militante político consciente há de ser a politização dos indivíduos,
procurando construir junto à população formas de pensar que sejam críticas, para
que se constituam em elementos dificultadores da manipulação ideológica
enganadora cada vez mais comum no mundo da vida (hoje talvez mais que qualquer
outra época, por conta da hegemonia de certas tecnologias de informação - os novos
"totens" da contemporaneidade).
"O povo não é bobo, abaixo a
Rede Globo" é entoado mais como propaganda (ainda que muito útil,
por
sinal, para o despertar de uma ideia válida) do que como realidade
prática. Pois
os mesmos que se empolgam com referidas palavras de ordem no momento
seguinte estarão
acessando referida rede (e outras similiares) em busca das versões por
elas oferecidas de interpretação da realidade (que os indivíduos, por
conta própria, não costumam ter formação adequada para interpretar). Os
mesmos que idolatram Joaquim Barbosa, por ser um novo ícone do
moralismo, podem em seguida apoiar ideias de um Jair Bolssonaro (situado em
posição política oposta a de Joaquim Barbosa) ou acreditar cegamente em análises feitas pela própria mídia tradicional (a
quem referido Ministro já acusou de ser hegemonicamente direitista e até racista). O
conluio entre ignorância, burrice ou má-fé (trindade a meu ver diretamente responsável pela
corrupção humana) faz com que a propaganda crítica seja aclamada e, eficazmente, não
seguida. É também o que faz com que a civilização, baseada no homem médio que empurra a vida
intelectual com a barriga (entre trabalhos extenuantes e diversões alienantes),
permaneça manipulada através dos espectros e rótulos abstratos, que servem como
guias para a ação com base na manipulação do medo e da ignorância populares. Mas
se nem às classes médias tradicionais (pretensamente letradas) estão imunes a
isso, quem dirá o povo (aquele que não é bobo, mas que no final assiste e
acredita sim na Rede Globo e suas similares). Ou talvez ainda outros que,
pretendendo-se superiores em virtude e inteligência, constroem da referida
"Rede" tão somente um novo espectro (portanto idealizado e dissociado
da realidade concreta), acreditando por exemplo que outras emissoras (de TVs
abertas ou fechadas, ou ainda revistas e jornais) seriam portanto mais dignas de
crédito (mais ou menos como os que concluem que a crítica à "Coca-Cola"
sirva então como atestado de bons antecedentes à Pepsi). A crítica eficaz, em
qualquer dos casos, morre, conforme já adiantado, diante da tríade traiçoeira da
ignorância, burrice ou má-fé. Por isso a tarefa de conscientização é cada vez mais árdua, cada vez
aparentando ser mais impossível, quando o be-a-bá do pensamento crítico precisa
ser ensinado a cada novo dia, por não ser nunca compreendido, resultando que por
trás das cabeças concordantes e das vozes aclamadoras, referidas ideias são
acolhidas tão somente como mais um novo espectro (idealizado, portanto, e nunca
cumprido), por ser-se incapaz de estabelecer as relações concretas com a
realidade ao nosso redor.
A idiotização do mundo seria então decorrente de uma
política construída com base em uma outra tríade - a do trabalho, pão e circo,
considerados mais
que suficiente àqueles não-ambiciosos intelectualmente? Pois quando os
que se
creem virtuosos, críticos do homem médio, de suas possíveis maiorias
populares e seu senso comum "irresponsável" e acrítico, não
raras vezes sendo estes primeiros pretensos devotos da ciência, da
filosofia e da crítica (consideradas
estas como ideias abstratas), deixam de colocar em prática o que
abstratamente embasa seus discursos (ainda que talvez
não por má-fé, mas por incapacidade de associação entre discurso e
interpretação da realidade), deixando-se manipular, chegando a atuar
muitas vezes de forma combativa e militante contra
tudo aquilo que em momento anterior o mesmo indivíduo é capaz de
condenar (em discurso relacionado a algum "espectro" abstrato), parece
que
não há outra saída que não abandonar referido campo de batalha (o da
classe média pseudo-politizada), seguindo adiante em busca de terras
mais férteis a serem semeadas.
O exemplo do golpe de Estado é emblemático (eis que condenado ingenuamente por
aqueles que em circunstância similares estariam entre os seus defensores - seja como
no caso de um governo que a mídia pinta como formado por
"homens maus" (ainda que não dessa forma, mas com o mesmo resultado), representando um risco à economia,
ao
patrimônio ou à moral dos homens de bem e de suas famílias - neste caso
quando defendesse enfaticamente bandeiras como aborto, união
homoafetiva, laicismo ou aliança com religiões pintadas como "inimigas",
riscos de desapropriações, conflitos sociais, violência urbana,
alegações de perseguição e censura à liberdade de imprensa, tudo
hegemonicamente enfatizado em denúncias
midiáticas como vinculações diversas ou favorecimentos a "criminosos" e
outras medidas que servem para assustar os mais conservadores) é
realmente só um exemplo de como se pode dar esse processo (seja aqui, na
Venezuela, na Nicarágua ou no Oriente Médio - o próprio Obama foi
pintado como "comunista" e militante islâmico pela propaganda dos
Republicanos). Não há países sem divisão ideológica, e isso ocorre tanto
nos países mais como nos menos desenvolvidos (nos menos desenvolvidos e
talvez em todos que se deparam com problemas mais sérios, como os são
os resultantes dos abismo sociais e outros sectarismos, as medidas
necessárias para serem eficientes tendem a ser menos moderadas, causando
maior choque e resultando em maior combate pelos seus opositores, e
pela mídia e demais setores que os representam). Acerca do papel dos
cidadãos comuns, outros
tantos exemplos o dia-a-dia oferece, demonstrando a recorrente
dissonância entre
discurso, prática e compreensão (crítica) da realidade, gerando
situações muitas vezes intransponíveis
(por conta do hermetismo "lógico-irracional" envolvido na construção das
interpretações ou nas teses defendidas), mesmo ao
militante mais bem intencionado. Há por fim que se medir o cansaço (que
pode realmente ser muitas vezes
extenuante), possíveis oportunidades e possíveis progressos. Quando
se sente que está perdendo a batalha, em nome de uma consciência social e
política mais crítica (mais imune a certas manipulações), parece não
haver muitas opções além de abandonar
a luta, seguir a correnteza (juntando-se às plateias do pão e circo -
ainda
que a alguns se dêem o direito de substituir o pão por banquetes), ou
continuar o
trabalho em outros campos (já que são cada vez mais numerosas hoje em
dia as frentes
de batalha). A paciência, por fim, deixa de ser uma opção, mas sendo
possivelmente uma imposição aos
que não se conformam com cada minuto que se perde na concretização de
uma sociedade melhor, mais justa, formada por indivíduos
verdadeiramente emancipados.
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