Segundo
Albert Camus, “só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o
suicídio". Aproveito-me de sua técnica pra apontar o problema que
considero fundamental acerca da democracia: sua convivência inevitável
com a ignorância, a burrice e a maldade.
Dito de outra forma, tenho que a ignorância
do homem (em especial do chamado "homem médio") tende a colocar todo o
processo democrático a perder. Ignorante aqui especialmente acerca de
sua própria concepção de mundo (normalmente nada além de um embaralhado
de opiniões casuísticas acerca de assuntos do dia-a-dia, e que não
subsistem a uma análise mais aprofundada sobre as efetivas razões que as
sustentam - exemplo do indivíduo que defende o direito ao aborto porque
achou que a argumentação de um determinado entrevistado da TV "fazia
sentido", ao mesmo tempo em que combate os direitos dos homossexuais
porque achou que uma outra argumentação de outro entrevistado, em outra
circunstância qualquer, também "fazia sentido" - nesse ponto, arrogo-me
no direito de não ser científico para apostar que cerca de 90% de nossos
cidadãos usam métodos do tipo pra formar suas chamadas "convicções").
Essa ignorância em relação aos valores que fundamentam determinados
posicionamentos ou que fundamentam sua própria posição pode ocasionar
opiniões diferentes em relação a assuntos por ele considerados como
independentes, mas que de fato estão baseados em princípios que
exigiriam (caso houvesse compromisso com certa coerência de posições)
uma ligação necessária entre si. Assim, sem compromisso com uma agenda
de ideias bem definidas ou coerentemente elaboradas com base em
princípios norteadores (normalmente vinculadas a correntes de pensamento
mais ou menos já estabelecidas no espectro ideológico), mas em nome da
pretensa "autonomia" de defender ideias descoladas de um linha
argumentativa coerente (comprometido apenas em relação ao que acredita
"fazer sentido"), este indivíduo oscila nas votações entre os mais
diversos candidatos dispostos nos mais diversos contextos, votando com
base em critérios obscuros que em nada contribuem para o processo ou da
discussão democrática (pois geralmente votam em espectros do que eles
"acham" que aquele candidato ou partido representa, sendo normalmente
manipuláveis pelas "impressões", mais então do que pela verdadeira
convicção). Referido indivíduo, sem conhecer que se vincula a uma
ideologia específica, ligado a um certo "autonomismo" comprometido
apenas consigo mesmo (de forma ineficiente, grande parte das vezes) e
com o que considera "fazer sentido" em um cenário específico
(independente de um contexto principiológico maior), está de fato
vinculado a uma ideologia espontaneísta - confiante demais no próprio
senso comum - que ao invés de ser radicalmente combatida, acaba sendo
disputada pelos políticos mediante as mais diversas técnicas. Da mesma
forma mas em sentido diverso, temos os que acreditam professar
determinada ideologia constante no espectro, ou um partido que a
representaria, com base em uma ideia nebulosa ou mesmo equivocada acerca
desta, sendo na prática um defensor de uma corrente que lhe é
ideologicamente oposta (com a qual imagina não simpatizar também por
conta de uma imagem equivocada a seu respeito). Assim, defende e ataca
espectros do que equivocadamente acredita representar referidas
ideologias, votando assim, sem saber, contra seus próprios valores
tradicionalmente defendidos na prática, comprometendo mais uma vez o
processo de escolha democrática (e este pode ser o mote que nos remete
ao próximo ponto).
Assim, temos que outro grande aliado da ignorância manifestada no processo democrático seja a burrice.
Neste caso, há a negação em si da lógica racional inerente ao processo
democrático (que manda serem escolhidos aqueles que representam nossos
reais interesses) e que embasa de forma eficiente qualquer decisão de
forma responsável. Dessa forma, torna-se impossível mesmo a demonstração
de equívocos do eleitor, uma vez que não há compromisso sequer com um
raciocínio capaz de possibilitar a demonstração de um possível equívoco.
Acredito que ocorra em menor grau que a ignorância, mas é uma variável
que não se deve descartar (um exemplo possível seria o de um vendedor
ambulante que vota em alguém comprometido exatamente com o combate ao
comércio ambulante ou de um conservador que vota no PT e que depois fica
indignado por eles aprovarem políticas de cotas, redução de penas e
outras medidas liberais que constam em seu programa desde os anos 80).
Mas talvez o maior prejuízo atribuível à incapacidade de raciocínio
decorrente de referido vício seja a impossibilidade mesmo de entender
os pressupostos que sustentam o regime democrático, arriscando-se assim
sua própria sobrevivência (além do inevitável comprometimento dos
processos de argumentação e contra-argumentação, fundamentais ao
entendimento democrático). A principal aliança entre burrice e
ignorância talvez seja a falta de qualquer vontade de superá-las (seja
achando-se entendido o bastante pra corresponder à sua condição de
cidadão ou achando que não tem qualquer obrigação de melhor se preparar a
esse respeito - mas isso acaba guardando relação também com o próximo
ponto).
Há, então, por fim, a maldade
- mas essa, por carecer de critérios claros de definição, fica mais
difícil de mensurar. Há, sem dúvida, os que defendem políticas de
extermínio em geral ou discursos de ódio, racismo e superioridade os
mais diversos, e que usam das liberdades democráticas para tentar fazer
prevalecer esse tipo de prática. Nesse sentido, então, pode-se
aproveitar o ensejo pra falar de uma outra prática talvez nociva que
pode ser usado dessa forma (ainda que, por enquanto seja uma
possibilidade meramente teórica) e tem a ver com outro direito
reivindicado: o direito de ser idiota, já mencionado noutras
oportunidades. Ora, o indivíduo, utilizando-se de uma possível
prerrogativa de ser um "idiota", pode, unindo-se a outros tantos com o
mesmo compromisso, votar simplesmente no pior candidato, com o único
intuito de prejudicar o processo democrático. Usando exemplos mais
práticos, tem-se na liberdade de ser idiota o direito de votar em quem
quer que seja, sem compromisso com ideologias ou correntes de
pensamento, simplesmente pelo motivo que quiser, sem ter que prestar
contas a ninguém sobre isso. Nesse ponto de vista, o direito de ser
idiota pode ser um dos grandes males no sistema democrático, porque
indetectável e não sujeito a um combate eficiente. Afinal, não há lei
possível de aprovação que impeça um idiota de votar.
Antes de encerrar, acredito que seja possível ainda incluir no campo da maldade ou má-fé todos aqueles detentores de grande poder político (derivado normalmente do poder econômico) que manipulam o processo político a seu favor. Esses, talvez, os maiores inimigos de fato da democracia, normalmente manifestados em torno da aliança poder econômico-mídia-poder político, alicerçados grandemente nas mazelas indicadas anteriormente.
Antes de encerrar, acredito que seja possível ainda incluir no campo da maldade ou má-fé todos aqueles detentores de grande poder político (derivado normalmente do poder econômico) que manipulam o processo político a seu favor. Esses, talvez, os maiores inimigos de fato da democracia, normalmente manifestados em torno da aliança poder econômico-mídia-poder político, alicerçados grandemente nas mazelas indicadas anteriormente.
Esses,
a meu ver, os principais entraves, difíceis de contornar, para a
efetiva eficiência do sistema democrático. Apesar de tudo, tenho a
democracia como o melhor sistema de todos. Por isso a necessidade de que
nos empenhemos em entendê-la (coisa que poucos na verdade o fazem),
para que um dia consigamos colocá-la verdadeiramente em prática.
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