Tá certo que não se pode exigir muito das pessoas
(infelizmente, de certa forma, eu diria), mas é fato que certos ambientes
acadêmicos têm sido comumente criticados por terem pouco compromisso com
ciência e filosofia, e demasiado apego ao senso comum e a ideias pouco
elaboradas (crítica e racionalmente), como se a academia não estivesse
cumprindo adequadamente seu papel.
Pois é. Se eu estiver certo no texto que segue, que
cessem as lamentações sobre a pouca qualidade e compromisso de nossos
acadêmicos, pois o senso comum tem sido amplamente utilizado mesmo nos
ambientes em que se insiste em criticá-los.
Não que eu seja um completo inimigo do senso comum.
A meu ver, trata-se de um conhecimento popular e rico, que tem suas áreas de
aplicação. Contudo, acredito que devam excluir-se de seu uso as áreas cuja
aplicação mais adequada seja indicada à ciência ou à filosofia. Afinal, como
dizem, "a casa do palpite é a casa ao lado"...
É do senso comum a possibilidade de incoerência
discursiva (afinal, os ditos populares aplicam-se a qualquer situação, sejam em
um sentido ou no seu sentido contrário). Não há método racional (provavelmente
não haja qualquer outro método), tampouco compromisso com a coerência e a
lógica. Bem, talvez não precise, dado ao que se aplica. E cada um aplica mais
ou menos, conforme a possibilidade ou capacidade de aplicar sistemas de
conhecimento mais complexos e adequados à compreensão da realidade.
Contudo, apesar de meu alto grau de tolerância,
acredito que haja assuntos em que deveríamos mesmo evitá-lo. Pensando bem, não
consigo achar outra área do conhecimento a aplicá-lo além do futebol e da culinária...
(será que estou sendo injusto? Ou talvez exigente demais? talvez haja outras
áreas...) Vejamos...
No meio acadêmico do Direito, é comum conversarmos
sobre temas atinentes ao Direito. Se devemos considerá-lo como ciência, ideologia ou mesmo arte, esta
discussão por si só teria um caráter filosófico (ou científico...). E o senso
comum? Acho que não, parece que em nada contribuiria (salvo engano... - o que ora
admito por pura filosofia).
Mas o que eu vim tratar mesmo é das "panaceias"
enlatadas, adquiridas no "mercado" dos discursos. Seriam as panaceias
discursivas científicas? ou filosóficas? Parece que nenhum dos dois. E como "panaceia
discursiva" me refiro a um sem número de frases, pretensamente eruditas,
que na verdade tratam-se de meras muletas discursivas, por encaixarem-se com
facilidade em várias situações, ainda que grandemente diversas entre si.
Exemplos.
Máximas como "nem tanto ao céu nem tanto à terra", acho graça quando ouço.
Não por não fazer sentido, mas por ser aplicável a praticamente tudo que seja polêmico
ou paradoxal que se esteja discutindo. E, por
aplicar-se a tudo, talvez não se aplique a nada. É mais ou menos como a
máxima de que algo que sempre parecerá uma mentira (ainda que não o seja), não
poderá ser considerado com seriedade. Um exemplo deste tipo de "mentira
presumida" é quando um candidato diz de si mesmo que é "o melhor".
Talvez ele até seja mesmo, mas a opinião externada por ele próprio é tão
suspeita que não pode ser considerada com seriedade (por pessoas minimamente responsáveis),
devendo-se buscar outros elementos além do próprio discurso daquele que é
diretamente interessado. Isso é o que eu quero dizer quando afirmo que algumas
coisas valem tanto como este tipo de "mentira presumida".
Uma delas são as panaceias enlatadas do tipo "nem tanto ao céu nem tanto à terra"
(que cumpre o mesmo papel das máximas "tudo é relativo", "não
sou tão radical" ou qualquer expressão do gênero). Grosso modo, trata-se da panaceia do
meio-termo (falsa, do ponto de vista lógico-racional, por ser tão irrealizável
na prática quanto os extremos que critica, comumente pendendo mais para um do
que para outro lado, apesar de não declará-lo). Não digo que não possa ser de
fato aplicável n'alguns casos (o conservador Aristóteles está aí pregando o
meio-termo desde a Antiguidade). E não se pode perder de vista que tudo aquilo
que não está no exato extremo (sempre difícil de identificar), estará entre os
extremos, ou seja, pode facilmente ser considerado "meio" entre os
extremos (e tecnicamente sempre pode haver algo ainda "mais extremo",
deslocando o ponto de referência). O mesmo se dá em relação ao "não sou
tão radical". Caso um regime totalitário tenha matado um milhão de
pessoas, o indivíduo que diz "não sou tão radical", poderia
acrescentar que mataria só umas cem mil pessoas... Aplicável a tudo, não se
aplica a nada.
Mas acredito que quem usa essas expressões, pensa
honestamente (assim imagino) que esteja resolvendo alguma questão e, de quebra,
demonstrando "bom senso". Panaceia por trata-se mesmo de ferramenta
de aplicação quase absoluta. De fato, por servir como uma "mentira
presumida", acaba sendo apenas uma sentença de quem não tem uma posição clara
a respeito de determinado assunto controverso (possivelmente porque sequer
tenha parado pra pensar a respeito). Mas, aos ingênuos, serve de fato como
resposta "adequada" pra praticamente todos os casos (desde a possibilidade
de aplicação de castigos corporais aos filhos, ou a intervenção do Estado na
economia, ou o reconhecimento de direitos sociais, etc.). Talvez não sirva
tanto para assuntos mais extremos, mas esses costumam ser minoritários. Assim,
acaba sendo uma panaceia eficaz, possível de aplicar a praticamente todos os
casos: não ser "tão radical". O bom e velho "meio-termo".
Outra que me faz graça é contestar um opositor argumentativo
afirmando que o exemplo por ele citado "é diferente". Nem precisa muito esforço. Quando alguém faz uma
comparação com algo que tecnicamente desmontaria seu argumento, é só afirmar que
"é diferente". Considerando que mesmo entre objetos com alto grau de semelhança
haja ainda uma infinidade de diferenças (que você pode considerar
"fundamentais", a seu critério), essa sentença é quase sempre
encaixável, sempre que quisermos escapar de uma enrascada argumentativa para o
qual não estávamos devidamente preparados.
Outra é negar a validade das fontes que trazem
informações que nos contrariam. A estratégia de colocar em dúvida a
credibilidade de algo ou alguém é popularmente conhecida na lógica
argumentativa (falácia ad hominem).
É, sem dúvida, a maneira mais eficiente de poder dizer "qualquer coisa
sobre qualquer coisa". Afinal, basta desacreditar qualquer fonte trazida
por nosso opositor, não importando o absurdo que possa parecer (é possível e até
comum colocar-se em xeque os próprios dicionários, como forma de fazer crer que
o nosso entendimento é o que está correto, e os dicionários errados - seja por
alegada "falta de qualidade" da obra ou até mesmo por alegadas
questões "ideológicas" dos dicionaristas...).
A questão ideológica é, em si, outra panaceia. Para
mostrar nossa pretensa "criticidade" em relação à algo, basta lançar
a acusação de "comprometimento
ideológico" (ad hominem
também). Essa talvez seja a mais absoluta de todas as panaceias, pois não
imagino neste momento onde não se a possa aplicar (afinal, a música "Ilariê"
da Xuxa pode ser acusada de "comprometimento ideológico"...).
Normalmente, pessoas ou entidades com a qual discordamos podem ser acusadas de
"comprometimento ideológico" indiscriminadamente, sem mesmo a
necessidade de apontar exatamente qual o grupo em relação ao qual se
comprometem (mas também podemos citar qualquer grupo que nos interesse,
independente de provas concretas). Ou disso ou da própria "corrupção". É o que eu chamo de "lógica de futebol" (se nosso time
perdeu certamente é porque houve roubo - ou alguém foi comprado - ou então os
assistentes do jogo, como juízes, bandeirinhas, etc., tem "comprometimento
ideológico" com o time adversário - o mesmo se aplica aos julgadores deste
ou daquele caso). Trata-se de um nível menos patológico da chamada "teoria
da conspiração". Penso que há de fato os que acreditam nessa argumentação
(e em alguns casos - minoritários, a meu ver - pode até ser coincidentemente
verdade). Mas é de fato uma questão de fé, um dogma, uma vez que não é possível
provar o contrário - ainda que se tenha como provar o contrário (mas a
evidência poderá ser questionada em sua credibilidade enquanto fonte, ou então
ser mais um caso de "comprometimento ideológico", etc.). De toda
forma, não é incomum que uma mesma pessoa ou entidade seja acusada de
"comprometimento" (ideológico ou por corrupção) mesmo em relação a
ideologias opostas (conforme o interesse do acusador). Lembro que instituições
como nosso Supremo Tribunal Federal é comumente acusado tanto de ser "liberal"
como "conservador", "marxista" ou "fascista"
(termos diametralmente opostos), assim como os governos ou as emissoras de TV,
ONGs, etc... Como disse, há muito de dogma e fé em afirmações retóricas pretensamente
"críticas" provindas do senso comum. Talvez as pessoas normais não
compreendam que o mundo pode ser um pouco mais complexo, mormente quando são múltiplos
os agentes envolvidos e a dialética das situações concretas. Mas o alegado "comprometimento",
seja por "corrupção" ou "ideologia", continua sendo das
melhores panaceias retóricas a serem usadas, de forma indiscriminada, quando
não tivermos opinião melhor sobre algum assunto. Volto a dizer, não por ser necessariamente
falsa a imputação, mas por não resolver a questão, sendo o mesmo caso da
"mentira presumida" (que pode ser verdade, mas que não funciona pela sua
própria aparência e natureza).
Importante
ressaltar ainda que o senso comum resolve as discussões com meras alegações,
não com evidências concretas (aí seria exigir demais, pois pesquisa séria
cansa - e já deixaria de ser senso comum).
Alguns "sensos comuns" são também
bastante úteis às panaceias discursivas. Principalmente se relacionadas às ditas
"teorias da conspiração". A busca por explicações simples (navalha de Occam) não é indicada no
senso comum. Prefere-se explicações escabrosas, obscuras, preferencialmente
envolvendo bastidores, acertos, conspirações, etc. Algo parecido com a tal
"conspiração judaico-financeira marxista" utilizada pelo nazismo, ou então
a tese do "marxismo cultural" apregoada pelos católicos, ou a "ditadura
gay" (ou "complô" gay) utilizada pelos conservadores sociais em
geral. Para as alas à esquerda, da mesma forma, os lugares comuns em relação ao
"FMI", "imperialismo", TV Globo (essa um eterno motivo de divergência
entre os que a acusam de liberalismo, conservadorismo, petismo, anti-petismo,
catolicismo, anti-catolicismo) etc.
O senso comum tende ao maniqueísmo. Ao identificar um dos lados como o "mal", jamais se identificará como fazendo parte deste lado, ainda que, com base nas características objetivas aplicáveis (quando aplicados os critérios adequados de conceituação), ele possa estar mais próximo deste (por haver mais semelhanças que diferenças nos valores defendidos) do que do lado que ele considera "idealisticamente" o lado "do bem". Isso ocorre basicamente por possuir uma imagem fantasiosa e equivocada sobre os lados em disputa. Os equívocos de definição levam ao senso comum julgar "espectros" idealizados, e não fatos concretos. Pode-se dizer, de forma simplificada, que é comum ao senso comum falar de coisas de que não entende. Muitas vezes sentindo-se até mesmo como autoridade no assunto (uma questão de autoestima). Todos querem ter opinião, poucos querem pesquisar.
Mas, no fundo, sei que deve haver motivo para tudo
isso. E o motivo que eu indico é a falta de pesquisa, séria e comprometida. Tá
certo que a todos é dado o direito de opinião (confesso que ainda não resolvi a
questão da "opinião do ignorante", tese antiga pra mim e que pretendo
tratar assim que possível). Mas em nome da melhor tradição de busca pela
veracidade dos fatos (ainda que não seja a "obsessão pela verdade"
que costumo aplicar a mim mesmo), penso que não custa uma mínima pesquisa, caso
queiramos ter opiniões mais embasadas - ou até que mereçam ser levadas a sério.
Sei também que muitos conceitos não são fáceis de aprender e alguns de fato exigem
um pouco mais do que mera iniciação. Sou o exemplo concreto de cansativas tentativas
de elucidação para chegar a consensos semânticos, enquanto as idiossincrasias
tendem a prevalecer aos consensos cientificamente elaborados. Infelizmente, pois
o uso correto dos conceitos ajudaria a melhor entendermos a realidade. Se é que
queremos entendê-la. Talvez só queiramos falar "qualquer coisa sobre
qualquer coisa", como forma de trabalhar nossa autoestima, aceitação e
sociabilidade (ainda que isso implique admitir um certo relativismo,
simplesmente por não querermos sacrificar as definições equivocadas em que
tradicionalmente acreditamos). Mas em muitas vezes não é isso que parece. Às
vezes ganha mesmo a pretensão de a discussão se dar por motivo de "cidadania"
ou compromisso com a "educação". Se for pelo relaxamento, então
infelizmente não se poderá exigir grande comprometimento. Mas se houver algo de
compromisso com educação e cidadania, aí penso que pode ser exigido maior
comprometimento, até mesmo para que não se alcance efeito inverso, de
deseducação por conta de informações inverídicas (muitos questionariam se existe
o "verídico" - discussão complexa que só pode ser tratada se
escolhermos a arena em que será abordada, que imagino não deva ser a do senso
comum...).
Agora sou assim. Se me pedem um conselho, apenas um
posso dar: pesquisem mais, e preferencialmente seguindo métodos lógicos, racionais
e críticos. É a minha panaceia. Mas que, diferente das outras, talvez esta seja
realmente eficiente a todos os males do intelecto.
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